GCAD_Cantigas da VINHA B

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O GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO comporta três volumes (1.920 páginas), com uma recolha de 1.150 canções tradicionais do Alto Douro Vinhateiro, recolhidas pelo autor (Altino Moreira Cardoso) em quintas com epicentro em Godim e Loureiro, no concelho do Peso da Régua, donde é natural.

Naturalmente, a maior parte dessas canções tem como temática as vindimas, em que participava sazonalmente uma mão-de-obra (homens, mulheres e rapazes das cestas) rogada nos arredores serranos.

A grande quantidade de cantigas da vinha motiva neste website uma amostragem privilegiada, distribuída por quatro grupos.

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EXEMPLOS

 

Indo eu por i abaixo (G C A D, vol II, 1163)  [Recolha e harm AMC]

Indo eu por ‘i abaixo,
à procura dos amores,
encontrei um laranjale
carregadinho de flores.
Deitei-me à sombra dele
p’ra que não me queimasse o sole;
espertei descoradinha
ao cantar o rouxinole.
– Rouxinol que tão bem cantas,
onde fostes aprendere?
– Ao palácio da rainha,
onde o rei estava a escrevere.
O rei estava na varanda
e a rainha no quintale;
atiravam-se um ao outro
com pedrinhas de cristale.
Umas a meio tostão,
outras a meio reale,
Outras eram d’alto preço,
ninguém le pode chegare;
Só lá le chegava o rei,
como pessoa reale.

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Flor da idália  (G C A D, vol II, 1162)  [Recolha e harm AMC]

Ó idália, ó flor da idália,
ó idália da flor amarela,
ai, à sombra da flor da idália
ai, enganei uma donzela.
Ai, enganei uma donzela,
ai, enganei uma viúva…
ó idália, flor da idália,
ó idália da folhinha miúda!
Ai, enganei uma viúva,
ai, enganei eu uma donzela:
ai, prometi-lhe casamento
e depois não casei com ela!
Ai, enganei uma donzela,
ai, enganei uma menina…
ó idália, flor da idália!…
ó idália da flor miudinha!…

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Maria, se fores ao baile (G C A D, vol II, 1165)  [Recolha e harm AMC]

Maria, se fores ao baile,
Leva o teu xaile,
Pode chover…
Está o céu anuviado,
Está o chão molhado,
Podes morrer!…
Maria, se fores ao rio,
Não vás ao frio,
E ao ar gelado…
Lá vem a noite cerrada,
Cai a geada,
Toma cuidado!…
Maria, se fores dançar,
Eu sou teu par,
Baila comigo!
Ao romper a bela aurora,
Tu vais embora
E eu vou contigo…

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Malhão 2  (G C A D, vol II, 1167)  [Recolha e harm AMC]

Ó Malhão, triste Malhão,
Ó Malhão triste coitado!
Por causa de ti, Malhão,
Ando roto, esfarrapado!
Ó Malhão, triste Malhão,
Triste vida te hei-de dar:
Não hei-de casar contigo,
Nem te hei-de deixar casar!
Ó Malhão, triste Malhão,
Ó Malhão endiabrado,
Por tua causa, Malhão,
Hei-de morrer estafado!
Ó Malhão, triste Malhão,
Ó Malhão sem ter rival,
És da terra do bom vinho,
És do Porto natural.
Ó Malhão, triste Malhão,
Triste há-de ser o teu fim:
Hás-de acabar os teus dias
À porta de um botequim!
Ó Malhão, triste Malhão,
O que foste e o que és!
Ó Malhão, que estás virado
Da cabeça para os pés!

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Ó arvoredo fechado  (G C A D, vol II, 1173)  [Recolha e harm AMC]

Ó arvoredo fechado,
Onde eu ‘stava namorando…(bis)
Olhei para trás e vi
Um passarinho chorando… (bis)
Tu que tens, ó passarinho?
Diz-me lá: quem te ofendeu?
Ele não me disse nada:
Bateu as asas… morreu… (bis)

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À HORTA (GCAD I, 48) [Recolha e harm AMC]

Quando vou à horta,
quando vou e venho,
já me não importa
do amor que tenho!

Do amor que tenho
já me não importa:
quando vou e venho,
quando vou prà horta.

O meu amorzinho
anda carrancudo
por lhe não falar
vezes amiúdo.

Vezes amiúdo
não lhe hei-de falar:
se anda carrancudo,
deixá-lo andar!
(Constantim e Pegarinhos, Agosto de 1959)

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Arregaça (GCAD I, 105) [Recolha e harm AMC]

Fostes dezer ó meu pai
que eu andaba coradinha
o Meu pai te respondeu
que esta cor foi sempre a minha.

Refrão:

Arregaça, arregaça,
arregaça o teu bestido;
arregaça, arregaça,
as calças ó teu marido.

Rua abaixo, rua acima,
toda a gente me quer bem:
só a mãe do meu amor
num sei que raiba me tem!

Crabo branco na janela
é sinal de casamento;
menina, recolha o crabo
que o casar inda tem tempo.

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Carambas!   (GCAD I, 129) [Recolha e harm AMC]

Ondas do mar, abrandai,
Carambas, carambas!
Eu quero caçar um peixe…
Carambas, carambas!
Mas, oh, que carambas!

Eu quero deixar o mundo,
Carambas, carambas!
Antes que o mundo me deixe…
Carambas, carambas!
Mas, oh, que carambas!

Ondas do mar, abrandai,
Carambas, carambas!
Eu quero passar além…
Carambas, carambas!
Mas, oh, que carambas!

Qu’ria ber o meu amor,
Carambas, carambas!
Que é quem eu quero bem…
Carambas, carambas!
Mas, oh, que carambas!

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Aqui, aqui, aqui! (GCAD I, 100) [Recolha e harm AMC]

Aqui, aqui, aqui,
Aqui, agora, agora,
Aqui, neste recantinho,
É aqui que se namora.

Aqui, aqui, aqui,
Aqui é qu’eu hei-de estar,
Aqui, neste recantinho,
Toda a noite a namorar!

Toda a noite a namorar,
Toda a noite a dar paleio,
É um regalo andar
Com seu amor ao passeio!

Com seu amor ao passeio
Seu amor a passear,
É um regalo na vida
Noite e dia a namorar!

Aqui, aqui, aqui,
Aqui é que se está bem,
Ai ao pé do meu amor,
Só com ele e mais ninguém!

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Água leva o regadinho (GCAD I, 72) [Recolha e harm AMC]

– Água leba o regadinho,
água leba o regador…
enquanto rega e não rega,
bou falar ao meu amor.

Refrão:

Ó balancé, balancé,
balancé da nebe pura,
ó minha Salve Rainha,
ó minha ‘bida, doçura’.

– Água leba o regadinho,
água leba e vai regar…
enquanto rega e não rega,
ao meu amor bou falar.

– Água leba o regadinho,
pela minha fonte abaixo…
escorreguei e caí,
cubrei o fundo ó tacho.

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As penas do verde gaio (GCAD I, 108) [Recolha e harm AMC]

As penas do Berde Gaio
são berdes e amarelas
num te incostes senão caio,
num me toques nas canelas.

Refrão:

Ai, ó Berde Gaio,
bai de rás trás trás…
que é do meu amor,
que é do meu rapaz?
Ai, Berde Gaio
bai de rus trus trus…
que é do meu amor?
stá pró Bom Jesus.

Incontrei o Berde Gaio
lá im baixo na ribeira,
c’uma guitarra na mão
para ir prá brincadeira.

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Violetas ao comprido (GCAD I, 603) [Recolha e harm AMC]

À beira do rio nacem
Bioletas ao comprido…
Inda ontem me disseram
Que num casabas comigo.

Eu casar contigo hei-de,
Mas per ora inda não…
Amanhã, por esta hora,
Te darei a decisão.

Fui ao Porto, fui a Braga,
Fui à cidade maior,
Não achei que te trazer,
Minha sucena (*)do sol.
(*) sucena=açucena

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GCAD_Cantigas da VINHA C

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O GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO comporta três volumes (1.920 páginas), com uma recolha de 1.150 canções tradicionais do Alto Douro Vinhateiro, recolhidas pelo autor (Altino Moreira Cardoso) em quintas com epicentro em Godim e Loureiro, no concelho do Peso da Régua, donde é natural.

Naturalmente, a maior parte dessas canções tem como temática as vindimas, em que participava sazonalmente uma mão-de-obra (homens, mulheres e rapazes das cestas) rogada nos arredores serranos.

A grande quantidade de cantigas da vinha motiva neste website uma amostragem privilegiada, distribuída por quatro grupos.

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EXEMPLOS

Dançar à espanhola (GCAD I, 162) [Recolha e harm Altino M. Cardoso]

Tim-tim olaré tim-tim
olaré tim-tim olaré quem é!
Sei falar à espanhola:
– carago, mira ustê!
Tim-tim olaré tim-tim
olaré tim-tim olaré quem é!
– Vira-te pra mim, ó Rosa!
– Abraça-te a mim, ó Zé!
1981

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Eu tenho laranjas doces (GCAD I, 215) [Recolha e harm AMC]

Eu tenho laranjas doces,
Ao canto do meu baú,
Para dar ao meu amor;
Oxalá que sejas tu..
O pastor que viu, que viu,
Ai, logo me açanou,
No seu lindo modo a jeito…
Foi você que m’enganou!
Foi você que m’inganou
E acredita o povo todo…
A laranja foi criada
No quintale do meu sogro.
No quintal do meu sogro…
Tanta silva, tanta amora,
Tanta menina bonita
E eu sem ter nenhuma agora!
E eu sem ter nenuma agora…
Ela ainda há-de vir
E o tempo da mocidade
Para me eu adevertir.

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Crescendo (GCAD I, 157) [Recolha e harm AMC]

Eu fui crescendo,
crescendo, crescendo…
dezasseis anos
passados lá vão!… (bis)
e foi então
quando o meu pai me disse:
– Ana Maria,
ajuda o teu irmão!…
1982

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Cuquinho  (GCAD I, 158) [Recolha e harm AMC]

– Era meia noute
cantaba o cuquinho,
cuquinho,
era meia noite cantaba na eira (bis)
Ai, sacode o pó da saia,
ai, sacode o pó da eira,
ai, sacode o meu amore,
que o tens à tua beira!
– Que és do meu agrado
bem cantar comigo,
comigo,
que és do meu agrado
num digas que não:
anda cá prá minha beira
amor do meu coração!
anda cá prá minha beira
amor do meu coração!

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A moleirinha  (GCAD I, 304) [Recolha e harm AMC]

Ai que lindos olhos tem
ai, a filha da moleirinha! (bis)
tão mal empregados nela,
andar ao pó da farinha! (bis)
Trigueirinha me chamaste
ai, eu do sangue não no sou
isto é de andar à farinha
foi o sol que me crestou…
Trigueirinha me chamaste,
ai, eu não me escandalizei:
trigueirinha é a pimenta
e vai à mesa do rei!
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VARIANTE: Tão mal empregada é ela / andar ao pó da farinha!

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Deitei os olhos ao rio  (GCAD I, 171) [Recolha e harm AMC]

Deitei os olhos ao rio,
para ber teu brio,
stabas a labar… (bis)
Laba, laba, labadeira,
stás na brincadeira,
stás a namorar… (bis)

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Deixa a moça  (GCAD I, 172) [Recolha e harm AMC]

Mais um peneireiro (*)
que na roda entrou (bis)
deixai-o bailar,
se ainda não bailou. (bis)
Ó do rouba-rouba
e torna a roubar:
rapaz deixa a moça,
vai pró teu lugar!
Vai pró teu lugar,
vai prá tua rua!
rapaz, deixa a moça,
que ela não é tua!
Que ela não é tua,
não é tua, não!
rapaz, deixa a moça
do meu coração!
(*)variantes: Mais uma estrela… Mais um papo-seco…)
(Constantim, 1950)

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Esta calçadinha  (GCAD I, 198) [Recolha e harm AMC]

Bib’ó cima, bib’ó fundo,
bib’ó meio do lugar! (bis)
Esta calçadinha
Vai ter à Ribeira,
Vai ter ao Reconco,
Vai ter à Feiteira…
É uma cegueira,
É uma loucura …
O amor dos homens
É uma impostura! (bis)

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Don Solidon  (GCAD I, 185) [Recolha e harm AMC]

Olha a doiradinha
ai, dom-solidom…
como vai airosa! (bis)
a mão na cabeça,
ai dom-solidom…
não lhe caia a rosa!… (bis)
Olha a doiradinha,
ai dom-solidom…
como vai contente!
a mão na cabeça,
ai dom-solidom…
não lhe caia o pente!…
Olha a doiradinha,
ai dom-solidom,
como vai bonita!
a mão na cabeça,
ai, dom-solidom,
não lhe caia a fita!…
Variante: Em vez da expressão “…não lhe caia…” também existe: “… que lhe cai…”  

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GCAD_Cantigas da VINHA D

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GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO

O GRANDE CANCONEIRO DO ALTO DOURO comporta três volumes (640×3=1.920 páginas), com uma recolha de 1.150 músicas – pautas com letras e músicas.

Estas canções tradicionais do Alto Douro Vinhateiro são precedidas de um completo estudo histórico-literário. Foram recolhidas pelo autor (Altino Moreira Cardoso) em quintas com epicentro em Godim e Loureiro, no concelho do Peso da Régua, donde é natural.

Naturalmente, a maior parte dessas canções tem como temática as vindimas, em que participava sazonalmente uma abrangente mão-de-obra (homens, mulheres e rapazes das cestas) rogada nos arredores serranos.

A grande quantidade de cantigas da vinha motiva neste website uma amostragem privilegiada, distribuída por quatro grupos.

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EXEMPLOS

A minha saia velhinha (GCAD I, 52) [Recolha e Harm Altino M Cardoso]

Ela: Ai, num olhes para mim
Ai, num olhes tanto, tanto!
Ai, num olhes para mim,
Que eu num sou o teu incanto!
Refrão
A minha saia belhinha
Toda rotinha de tanto bailare
Agora tenho uma noba
Feita na moda pra istriare.
Ele: Ai num olhes para mim,
Ai num olhes, ó baidosa!
Ai, num olhes para mim,
Que num és nenhuma rosa!
Ela: Ai num olhes para mim,
Ai num olhes por fabore!
Ai num olhes para mim,
Que eu num sou o teu amore!
Ele: Ai num olhes para mim,
Ai co’ essa cara torta,
Ai num olhes para mim,
Bai bater a oitra porta!

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Eu gosto de ti  (GCAD I, 207)  [Recolha e harmonia de AMC]

– Ó meu amor, não me deixes, ai,
Não saias da minha beira,
Eu quero casar contigo, ai,
Não quero ficar solteira!
Refrão: Eu gosto de ti,
Tu de mim não gostas,
Eu olho pra ti,
Tu viras-me as costas…
– O meu amor é padeiro, ai,
Traz a cara enfarinhada,
Seus beijos sabem a pão, ai,
Não quero comer mais nada!
– O meu amor é tão lindo, ai,
Ganhei-o na romaria:
– Dei-lhe logo o coração
Pois disse que me queria…
– Nos braços do meu amor, ai,
Na romaria dancei,
Nas voltas de uma rodinha, ai,
Meu coração lhe entreguei…

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Eu não te quero (GCAD I, 211)  [Recolha e Harm AMC]

– Eu não te quero,
tu não me serves;
eu não te quero,
já te tinha dito, (bis)
eu não te quero
para meu noivo,
tenho outro,
tenho outro,
mais bonito! (bis)
– Aquela moça,
que anda no meio,
tem quinze anos,
já se quer casar!
Ande a roda,
desande a roda,
escolha o par,
escolha o par
que lhe agradar!…

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Eu no minério (GCAD I, 212)  [Recolha e Harm AMC]

– Eu no minério
trabalhaba… trabalhaba…
todos ganhabam,
só eu num ganhaba nada! (bis)
– Ó minha mãe deixe, deixe,
ó minha mãe, deixe-me ire!
deixe-me ir para o minério
eu bou e torno a bire!

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Ciranda (GCAD I, 152)  [Recolha e Harm AMC]

Ó ciranda, ó cirandinha,
vamos todos cirandar,
vamos dar mais meia volta,
meia volta e troca o par!
Dona Chica, Dona Chica,
faz favor de entrar agora:
cante lá um lindo verso,
diga adeus e vá-se embora!
Diga adeus e vá-se embora
que eu fico pra bailar:
quero dar mais meia volta
com o meu querido par.
Outra versão da letra:
Ó Ciranda, ó Cirandinha,
vamos nós a cirandar:
na ramada das videiras
anda a ciranda no ar.
Anda a ciranda no ar,
anda a ciranda no chão:
ó Ciranda, ó Cirandinha,
amor do meu coração.
Amor do meu coração,
não há palavra mais doce;
quer tu me queiras, quer não,
gosto de ti, acabou-se!

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Eu por ti suspiro  (GCAD I, 213)  [Recolha e Harm AMC]

Não há pão como o de trigo (bis)
Nem luar como em Janeiro
Não há sol como o de Maio (bis)
Nem amor como o primeiro!
Refrão:
Eu por ti suspiro,
eu por ti dou ais,
eu por ti não posso
suspirar já mais!
Num há roixo como o lírio, (bis)
nem berde como o loreiro,
nem brumelho cumo o crabo, (bis)
nem amor cumo o primeiro!

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Vem à janela  (GCAD I, 590)  [Recolha e Harm AMC]

Ele: Ó bela, vem à janela,
Há dias que te não vi!… (bis)
Venho saber da resposta
Da carta que te escrevi… (bis)
Ela: A carta que me escrevestes
Meu pai me ficou com ela…
e eu morro de paixão
se não sei o que vem nela!
(…)
Se eu dormia com a bela,
toda a gente lo sabia:
pois eu dormia com ela
porque a mãe o consentia!

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Vou pró Brasil  (GCAD I, 611)  [Recolha e Harm AMC]

– Bou pró Brasile, linda morana,
num é pra ganhar dinheiro,
linda morana, morana linda, ó ai. (bis)
É pra que digam nas moças, linda morana,
Biba o senhor brasileiro!
linda morana, morana linda, ó ai.
– Bou pró Brasile, linda morana,
mas num bou por munto tampo,
linda morana, morana linda, ó ai.
os teus olhos bão comigo, linda morana,
num me sais do pansamanto,
linda morana, morana linda, ó ai.
– Bou pró Brasile, linda morana,
Minha bontade é ficare,
linda morana, morana linda, ó ai.
bou no primeiro bapore, linda morana,
contigo quero falare,
linda morana, morana linda, ó ai.
– Bou pró Brasile, linda morana,
o meu peito bai com dore,
linda morana, morana linda, ó ai.
heide bir casar contigo, linda morana,
há-des ser o meu amore,
linda morana, morana linda, ó ai.

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Caninha verde do Marão  (GCAD II, 1135)  [Recolha e Harm AMC]

(Depois da introdução musical:)
Caninha verde
Ai, do Marão
Linda cara lindos olhos
eu dou-te o meu coração
ó i ó ai
…meu coração
ó minha caninha verde
ó Senhora do Marão!
(…)
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GCAD_NATAL-REIS

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Natal de 2021

O Natal é uma referência que ultrapassa infinitamente as próprias coordenadas religiosas, penetrando na consciência dos limites da Condição Humana e transportando os “homens de boa vontade” para lá das fronteiras do próprio Sonho.

As músicas secularmente inspiradas nesta Quadra transportam esse Poder unificador e santificador.

A Música é o mais puro e sublime dos meios de exprimir os sentimentos humanos, permitindo partilhar em Família e Amigos as emoções de todo o Ano, de todos dias da Vida.

Einstein, o génio-violinista, afirma convictamente que a Música é a verdadeira religiosidade.

Os ABBA cantam: “Obrigado pela música, pelas músicas que vou cantando (…) Sem música o que somos?”

E nos “Encontros Imediatos…” é a Música o meio de comunicação com os extraterrestres que dá acesso às fronteiras do Universo.

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EXEMPLOS

Mãos dadas em Família (Letra Música: Altino M Cardoso)

MÃOS DADAS EM FAMÍLIA

Vem ter connosco à lareira da Paz,
que estás
em casa que é tua:
Liberta os olhos do chão e da bruma
e fuma
o perfume (o perfume…) da rua;
Vem ter connosco a esta mesa de altar
sagrar o Hoje e o Ontem,
recordaremos os dias da infância
na ânsia (na ânsia…)
que sempre despontem…
Refrão:
De mãos dadas é bom viver
olhando o Além (o Além…)
quando o sol – na noite a descer –
se acaba também…
Como irmãos
a esta Consoada
não falte (não falte!) ninguém!
Vive em nós a seiva sagrada
do Pai e da Mãe!
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Tu, que nas margens do lago (Enrique Chia | Arranjo: A M C)

TU, QUE NAS MARGENS DO LAGO

1. Tu que nas margens do lago / não buscaste nem sábios nem ricos,
mas só quiseste que eu Te seguisse:

Refrão:

Senhor, Tu fixaste meus olhos,
ternamente meu nome disseste.
Nesse lago eu deixei minha barca,
pois em Ti encontrei outro mar.

2. Tu sabes bem o que eu tenho / em meu barco: nem ouro, nem armas,
somente as redes e meu trabalho.

3. Tu, necessitas de mim; / meu trabalho, que a outros descanse;
do meu amor, sinal d’ esp’rança.

4. Tu, pescador de outros lagos, / ânsia eterna daqueles que esperam
um bom amigo que assim nos chamas.

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Noite Feliz (Arranjo 1 – AMC) [CF 71]

NOITE FELIZ
1. Noite feliz! Noite feliz!
O Senhor, Deus de Amor,
Pobrezinho nasceu em Belém!
Eis na lapa Jesus noso bem!
Dorme em paz, ó Jesus!
Dorme em paz, ó Jesus!

2. Noite feliz! Noite feliz!
Ó Jesus, Deus de luz,
Quão amável é o teu coração,
Que quiseste nascer nosso irmão
E a nós todos salvar!

3. Noite de paz! Noite de luz!
Os anjos cantam: Glória a Jesus!
Coros celestes anunciar vêm
Que é já nascido Jesus em Belém
Noite de paz e luz
Louvor e glória a Jesus!

4. Noite feliz! Noite feliz!
Eis que no ar vêm cantar
Aos pastores os anjos dos céus,
Anunciando a chegada de Deua,
De Jesus Salvador.
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Noite Feliz (Arranjo 2 SINOS – AMC)

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Glória in Excelsis Deo! –  Trad (arranjo: AMC)

GLÓRIA IN EXCELSIS DEO!
1. Ah! Vinde todos à porfia
Cantar um hino de louvor
Hino de paz e alegria
Que os anjos cantam ao Senhor:

Refrão:
Glória in excelsis Deo!

2. Naquela noite venturosa
Em que nasceu o Salvador
Os anjos com voz harmoniosa
Deram no cém este clamor:

3. Vinde juntar-vos aos pastores
Vinde com eles a Belém,
Vinde correndo perssurosos
Pois o Senhor enfim nos vem:

4. Cantava em nossas campinas
Esta noite um querubim
E com vozes argentinas
Cantavam outros assim:

5. À lapinha de Belém
Alegres todos correi
Ide ver o Deus-Menino
E com os anjos dizei:

6. Ao Menino levai mimos
A vosso Rei adorai
E com voz harmoniosa
Jubilosos entoai:
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White Christmas (Trad e Arr AMC) [CF 75]

WHITE CHRISTMAS
Sonho com um Natal branco
Como era quando fui criança
E as estrelas, lá nas alturas,
Abriam asas à esperança…

Sonho com um Natal branco
No calorzinho da lareira,
Quando os anjos vinham do céu
E abençoavam a Terra inteira!

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Adeste, fideles (Arr – AMC) [CF 47]

Adeste, fideles,
Laeti, triumphantes!
Venite! venite
In Bethelem!
Natum videte regem angelorum!
Venite, adoremus!
Venite, adoremus!
Venite, adoremus Dominum!
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Balada de Natal do órfão (L e M – AMC) [CF 48]

BALADA DE NATAL DO ÓRFÃO

1. Não tenho mãezinha
ou paizinho
e o meu sapatinho
é velho e remendado;
eu vivo num bidon de lata,
moro entre a sucata
e o céu estrelado…

Gostava de ter chaminé,
mas no meu staminé
só há canos de esgoto
quando há cogumelos pra ceia,
a barriga está cheia
e canto à luz de um coto:

REFRÃO:
Chamam-me um reguila
e um puto
ninguém vê o luto,
a miséria e a fome;
muito oiço falar de Natal
mas nada de especial
tem pra mim esse nome!

2.Eu sei de outros tipos que têm
um pai e uma mãe
e por vezes irmãos,
brinquedos, roupas lavadas,
salas enfeitadas,
tudo no Natal.

Faz raiva os brinquedos e as luzes,
os doces e as cruzes,
e a comida quente…
…mas eu tenho estrelas
e rosas
grilos, mariposas…
também estou contente…!
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Happy Christmas/Bendito Natal  (Beetles – Arr e trad – AMC) [CF 50]

HAPPY CHRISTMAS / BENDITO NATAL !

Bendito Natal!
Feliz Ano Novo!
Que a Paz e a Harmonia
Consagrem o Povo!
Que as Trevas e o Medo
Pra sempre terminem
E que venham cedo
Faróis que iluminem!
Já no Céu profundo
Refulge uma Cruz…
A Luz deste Mundo
Chegou com Jesus.

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Cantem, cantem os anjos – Man Faria – Arr – AMC) [CF 52]

CANTEM, CANTEM OS ANJOS

Refrão:
Cantem, cantem os anjos a Deus um hino
Cantem, cantem os anjos ao Deus Menino

1. Em Belém à meia-noite
– Noite de tanta alegria! –
Nasceu Jesus num presépio
Filho da Virgem Maria.

2. Em Belém à meia-noite
– Foi na noite de Natal –
Nasceu Jesus num presépio
Maravilha sem igual!

3. Em Belém à meia-noite
Nasceu dos céus o sorriso
Para nos abrir de novo
As portas do paraíso.
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Dorme, meu menino – Tradicional – Arr – AMC) [CF 55]

DORME, MEU MENINO
A lua nasceu e cresceu no além,
A noite chegou também,
Meu bébé vai dormir
Vai dormir e sonhar
Deixa a lua crescer lá no ar…

A roca poisou e largou sem chorar
Os olhos vai já fechar…
Nada pode impedir
Que o bébé durma bem,
Nem papão há-de vir
Nem ninguém.

Tu verás, meu amor,
Como é bom sonhos ter:
Deus te dê o melhor
Que houver!
Anjo meu, faz ó-ó,
Que eu velo por ti;
Só aos anjos a lua sorri…
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Hoje na Terra – C. Gabarain – Arr – AMC) [CF 60]

HOJE NA TERRA NASCE O AMOR
Hoje na Terra nasce o Amor,
Deus para os Homens
Salvador.

1. Alegria! Paz e Amor
Para os Homens cá na Terra!
Alegria! Paz e Amor
Que esta noite nasce Deus!

2. Alegria! Festa e Paz
Para os Homens cá na Terra!
Alegria! Festa e Paz
Que esta noite é Natal!

3. Alegria! Paz e Bem
Para os Homens cá na Terra!
Alegria! Paz e Bem
Jesus nasceu em Belém.
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Jingle bells – Tradic – Arr – AMC) [CF 64]

JINGLE BELLS    [É Natal! É Natal!]
1. Rasgaram-se as trevas! O sol tem mais luz
A estrela em Belém mostra-nos Jesus.

Refrão:

É Natal! É Natal!
Salvação e luz
É Natal! É Natal!
Já nasceu Jesus!

2. Já tocam os sinos na Terra e nos Céus,
Soam nas alturas cânticos a Deus.

3. Paz na Terra aos Homens! Alegria e Bem!
Foi a Boa Nova do Anjo de Belém.

4. A todos os Homens de boa vontade
Traz Jesus o anúncio de uma nova Humanidade!
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Serenata de Natal – Letra e Música AMC) [CF 73]

SERENATA DE NATAL

1. É tudo paz, doçura,
Na Terra adormecidaI
Há sonhos de Ventura,
A Dor é esquecida …

Dormitam as estrelas
Em berços de Luar,
Nos vidros das janelas
A Lua vem brincar.. .

REFRÃO:
Anjos embalam o Mundo,
A Guerra não mata;
As vozes do Céu profundo
Cantam em Serenata…

Já não há mais Solidão,
Nem o Ódio existe;
Os Pobres já têm Pão
E o Amor não é triste.

2. O Sonho entra nos lares,
Feliz, pé ante pé,
E transforma os pesares
Em risos de bebé…

Um perfume de prece
Recorda a Primavera…
…Ai, se o Mundo quisesse,
Que bom, que bom que era!…
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Oh, Christmas tree – Tradic Arr – AMC) [CF 72]

OH CHRISTMAS TREE
1. Ó luz de Deus, ó doce luz,
Que brilhas nas alturas!
Vem com teu brilho e teu fulgor
Trazer ao mundo o Teu calor!

2. O mundo viu o Salvador
Nascer humilde e pobre.
Ouviu os anjos proclamar
A paz que os homens vem salvar.

3. O Deus do céu vem junto a nós
Viver a nossa vida.
Vem das alturas o Senhor
Manifestar o Seu Amor.

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Reis – Noite fria (tradic Arr – AMC) [400 CPR 469]

REIS – NOITE FRIA
1. Noite fria de Dezembro
Sem lua nem estrelinhas
Deitado numas palhinhas
O Deus-Menino sorri.

Noite fria, mas tão bela…
E eis que no cabo do mundo
Três Reis vêem uma estrela
Que brilha no céu profundo,
Que brilha no céu profundo.

2. É uma revelação
De mistério e de carinho
E diz-lhes o coração
Que se ponham a caminho.

É a estrela que os guia
Através do espaço imenso
E cada um oferecia
O ouro, a mirra, o incenso,
O ouro, a mirra, o incenso.

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Jesus Menino (Letra e Música – AMC) [400 CPR 443]

JESUS MENINO

1. Era uma vez uma flor
despontada no Amor
infinito e profundo,
nascida em Paz e Aleluia
para sorrir um dia
e florir todo o Mundo!

Era uma vez um Menino
inda pequenino
– bracinhos em cruz… –
deixou-nos no sapatinho
Paz e Amor e Pão e Vinho…
seu nome é JESUS.

REFRÃO:
Natal!
Lume santo no Lar
do Amor a cantar,
do Pecado a pesar,
da Inocência a sorrir…
do Perdão a jorrar,
da Paz a crepitar,
do Carinho a florir…
Natal!
Festa dos Pobrezinhos
de corações quentinhos
à lareira da Esperança;
Natal!
traz o sonho e as trindades,
a emoção e as saudades
num olhar de Criança…!

2. Era uma vez uma estrela
na noite mais bela
do fundo dos céus,
a indicar o caminho
da Paz, do Carinho
que leva até Deus…
Enquanto a estrela fulgia,
o Homem sentia
o calor dessa luz
adormecida à noitinha
à porta de uma lapinha
– berço de Jesus.
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Natal na Aldeia Branca [Letra e Música – AMC ) [400 CPR 372]

NATAL NA ALDEIA BRANCA

Natal na aldeia
é como Deus na última Ceia:
com toalhas cor de linho imaculado
e colchas bordadinhas, de noivado…

Casinha branca,
na chaminé fumo que sai,
amor de mãe, amor de pai…
ceiinha franca,

com toalhas cor de linho imaculado
e colchas bordadinhas, de noivado…

Natal na aldeia
é lume que incendeia os corações
em lágrimas, amor, recordações,
e preces, e presépio, e sapatinhos…

Natal na aldeia
é vida que se acende na tardinha,
beiral inda com ninhos de andorinha,
partilha de presentes e carinhos…

com toalhas cor de linho imaculado
e colchas bordadinhas, de noivado…
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Glória! Hossana! – Benjamim Salgado – Arr AMC) [CPR 470]

GLÓRIA! HOSSANA!
Glória! Hossana!
Eis Jesus Cristo
No presépio de Belém!
São José pôs-se a adorá-lO
Adora-O a Virgem-Mãe.

1. Entram Reis, entram pastores,
Cantam os anjos em roda;
Andam na altura as estrelas
A arrumar a sombra toda!

2. Povos da Terra, exultai,
Já nasceu o Deus-Menino;
Almas em festa, cantai,
Acompanhai-me neste hino.
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Chaminé de Natal (Letra e Música – AMC) [400 CPR 425]

CHAMINÉ DE NATAL
É bom ver fumo,
sem Pé e sem Norte,
sem Paz e sem Rumo…
No mar da Sorte,
Barquinho sem vela
Sucumbe à Procela…
A Vida avança,
em Paz, Esperança,
em Guerra e Tormento,
em Sol, ou Vento,
em Norte, em Bonança,
em Lamento…

Refrão:
A Chaminé faz pensar
(e faz bem…)
Na Fé, no Amor,
no Passado também…
um lume brando,
e o Fumo voando
é Vida que passa,
que foge, que esvoaça…
Faz bem pensar,
ver a Vida a passar…
(… faz bem pensar!…)

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Cremos em Vós, ó Deus (Tradic Harm – AMC)

CREMOS EM VÓS, Ó DEUS
Cremos em Vós, ó Deus,
Cremos em Vós!
Ó Pai, que estás nos céus,
Olhai por nós!

Chegue até Vós, ó eus,
A nossa humilde voz:
Cremos em Vós, Ó Deus,
Cremos em Vós!
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Nana… nana…. (Tradicional – Harm AMC)

NANA… NANA…
Nana, nana, meu menino,
Que a mãezinha logo vem,
Foi lavar os teus paninhos
À fontinha de Belém…
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Natal dos Velhinhos (Música – AMC) [400 CPR 453]

NATAL DOS VELHINHOS (sem letra)

[Apenas o som abandonado de uma harmónica na noite indiferente e fria…]

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GCAD_DESGARRADAS

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DESGARRADAS

Cantigas ao Desafio

 

Introdução histórico-literária 
Ver no GCAD - Introdução ao Vol II). Ver também o estudo elaborado no Vol III

AO LONGO DA HISTÓRIA DA NOSSA LITERATURA existem algumas referências aos improvisadores, ou repentistas, que se exercitavam, por vezes, a travar batalhas poéticas, para gáudio de quem assistia e, até, tomava partido por um deles.

Desde o século XII, o improviso é referido com os menestréis, jograis, segréis e outros artistas populares, geralmente ambulantes, do nascimento de Portugal na Idade Média galaico-portuguesa. Mas os próprios trovadores tinhas as suas ‘tenções’, em que o diálogo funcionava em esquema de… dialéctica: tese-antítese, proposição-objecção.

Leia-se uma tenção medieval (séc.XII-XIII) célebre, entre dois grande trovadores: Pero Velho de Taveiros e Paay Soarez.

Quando, no século XV, a estabilização das fronteiras, pela Aliança Inglesa, permitiu o desenvolvimento das actividades do lazer, das artes e manhas e da vida palaciana, com muitos bailes e ‘coquetterie’, os poetas do CANCIONEIRO GERAL de Garcia de Resende alargam atenção a autênticos torneios poéticos, que travam em presença (e, geralmente, em louvor) das damas. A finalidade do CANCIONEIRO GERAL é, precisamente, reunir “coisas de folgar e gentilezas”, em que aparece um neologismo significativo: o verbo ‘donear’ (curiosa a semelhança com ‘pavonear’…).

Os torneios (descantes, desafios) poéticos ficam registados e institucionalizados como obras literárias. Então os temas e processos são mais subtis e elaborados, adequados ao exibicionismo cortesão. Talvez valha a pena ver o “Cuidar e Suspirar” que abre a colectânea, que tem como poetas actantes Jorge da Silveira e Nuno Pereira. Está, ainda, presente a sátira no “Processo de Vasco Abul”, em que este e Anrique da Mota travam valente discussão sobre a oferta de um fio de ouro pelo Vasco a uma rapariga num baile…que, por desprezo, nem o quis aceitar…

Mas o apogeu deste género literário-musical situa-se logicamente na época áurea do lazer barroco e do colonialismo português, em que vinha ouro ‘às carradas’, do Brasil. É a época de D.João V, o Magnânimo (esbanjador), do Convento de Mafra e do florescimento dos Conventos, a abarrotar de gente para ali atirada pela lei dos morgadios: os filhos segundos ou iam para as armas ou para as sacristias. O convento não era sinónimo de profissão de fé – e, muito menos, de pobreza, obediência e castidade…

São desse tempo os célebres ‘outeiros’, assembleias ou partidas, frequentados por Bocage e renomeados por Almeida Garrett, ele próprio um especialista em assuntos de donear. Estes eventos foram precursores dos encontros ou jornadas culturais e o exibicionismo de homens e mulheres (peraltas e sécias) e eram dignos do rei magnânimo, que distribuía ouro generoso às lindas freiras de Odivelas.

Sendo a capacidade de improvisação poética de Bocage por demais conhecida, é fácil imaginar o nível e brilho desses despiques poéticos, mesmo malcriados:- “Tantos sinos!… tantas porcas!” – atira Bocage às freiras que tocam para as novenas, fazendo trocadilho com os numerosos parafusos dos mesmos…

Mais tarde os Salões (ex. da Marquesa de Alorna) tentaram harmonizar o estatuto social e a excelência artística. A improvisação artística ainda hoje seduz, por exemplo, os melómanos do jazz (de origem negra, denominado ‘música para fumar, beber e bater o pé’).

Certas vanguardas dramáticas e até sinfónicas também exploram a criatividade instantânea e produzem obras de arte de muito apreço. É de acrescentar que certos artistas, através de psicotrópicos, provocam estados de êxtase criativo e improvisam para os suportes de gravação obras, que depois editam e arranjam, para serem publicadas.

A um nível popular, a improvisação é uma graça de criatividade dada só a alguns, sem que, para isso, precisem sequer de saber ler. António Aleixo é um exemplo de homens, e mulheres, que um pouco por todo o País, mas sobretudo no Centro-Norte, animam festas e arraiais com assuas CANTIGAS À DESGARRADA, algumas calorosamente disputadas.

Além dos grandes despiques, de muitas horas, nos arraiais da Régua e Lamego, na minha memória perduram as cantigas ao desafio das pousas, das dez à meia-noite, com que os homens matavam o sono e o cansaço de um dia hercúleo. Eram homens pouco ou nada alfabetizados, mas possessos do génio dionisíaco da improvisação, que uns copitos – ou aquelas pingas de aguardente das dez horas da noite – mobilizavam ou catalisavam.

Tenho escutado e apreciado durante muitos anos inúmeros cantadores e quero deixar neste livro memória de alguns: o Luís das Farpas e filho Zé do Fado (Costa do Vale), o Teotónio (A-das-Lebres), o Acácio Ferreira (Chaves), a Celeste da Barca (Ponte da Barca), o Amadeu Paiva (Castro Daire), o Zé Maria (Pimeirô-Cinfães)… e tantos outros.

As temáticas das letras são inesgotáveis: as qualidades dos cantadores, as notícias da terra, os trabalhos do campo, a emigração, a política, a saúde, a educação… ou factos extraídos da

História de Portugal… Também há cantos brejeiros, cheios de trocadilhos, por ex. entre cantador e cantadeira, ou (ver também neste livro) acerca de um cantador que tem bigode…

Esta polivalência e capacidade pedagógica deviam ser reconhecidas e institucionalizadas. Os cantos ao desafio presentes no Alto Douro possuem características próprias, que sublinho:- a melodia-base do acompanhamento, geralmente fixa;- acompanhamento a violão;- bombo para sublinhar o ritmo e encher melhor o baixo;- melodia do cantador, nem sempre fixa mas criativa, mas permitindo variantes como a letra: reagindo, sublinhando, interrogando, desafiando, defendendo…;- violino, que sublinha a melodia da concertina;- mais raramente, aparece o clarinete, mas sem a incidência e o relevo do violino.

Mas também encontrei melodias de violino independentes das da concertina, autónomas…- …e, assim, uma riquíssima desgarrada, quase sinfónica, com três melodias: concertina -violino – canto! Pude captar duas ou três, que transcrevo no respectivo capítulo. Na análise das várias gravações e audições que efectuei (em muitas centenas de quilómetros percorridos), verifica-se que– já raramente aparece o tocador do bombo;– também não aparece sempre o do violão (viola), talvez por se pensar erradamente que o baixo da concertina substitui a marcação musculada de um bordão bem sincronizado.– as potencialidades sonoras da concertina diluem a presença de outros instrumentos, o que despersonifica o espectro sonoro e empobrece muito a riqueza harmónica destas peças. – a desgarrada completar-se-ia sinfonicamente equilibrando a concertina com um violino, um clarinete, um bombo e dois violões, ou um violão e uma viola-baixo.

Os cantadores ao desafio são solicitados para encontros e festas exclusivamente regionalistas. Não se lhes atribuem valores artísticos (poéticos e musicais) de sentido pleno. Ora, se se transcrevessem as letras improvisadas de algumas cantigas ao desafio e, depois se burilassem um pouco, estaríamos perante aceitáveis obras poéticas. Por isso, este género poético-musical devia ser aceite, com aceitável dignidade, nas grandes Salas que os ditadores das modas artísticas e os detentores das verbas do erário público, reservam para centenas de espectáculos da moda enlatados, batidos, ‘pimbados’, sem a mínima originalidade e capacidade criativa, isto é, sem Dignidade artística.

Neste livro são transcritas letras e músicas de alguns cantadores, sobretudo do eixo Cinfães-Resende-Montemuro-Castro Daire – donde partiam, e partem, ainda hoje, muitas ‘rogas’ para a grande Festa do Vinho e da Música no Alto Douro Vinhateiro, actualmente Património Mundial.

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O GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO II apresenta um capítulo dedicado às DESGARRADAS, ainda hoje muito apreciadas em festas, convívios e arraiais.

As desgarradas ou cantigas ao desafio eram integradas na festa das Vindimas do Douro, num terreiro de baile ou, sobretudo, durante a pisa das uvas nos lagares, antes da mecanização e das cooperativas.

A pousa, ou lagarada, decorria durante 4 horas, até à meia-noite. Dividia-se em duas partes: a primeira era rígida e ritmada pela voz potente de um mandador: “esquerda-direita-um-dois…” e a fileira de homens percorria com rigor e uniformidade toda a superfície do mosto no lagar.

As segundas duas horas prestavam-se a vários divertimentos e cantigas para afastar o sono, depois do canto de “Liberdade, liberdade, quem na tem chama-lhe sua…”.

Uma das cantigas era a desgarrada entre dois contendores divertidos, aqui representados por dois galarozes.

Actualmente as desgarradas são acompanhadas com concertina e viola (já raramente o violino); mas nos tempo das pousas a viola acompanhava um violino. Prefiro utilizar o violino nas transcrições apresentadas.

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Os Volume II e III do GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO estudam literariamente o fenómeno poético-musical que tem sobrevivido desde a Idade Média (galego-português), com foco em Santiago de Compostela e ainda anterior à Fundação de Portugal: as tenções,  cantigas ao desafio ou, ainda, desgarradas.

Estas cantigas são diálogos musicais com mensagens de vários conteúdos expressas em redondilha maior (7 sálabas métricas) e formas melódicas correspondentes a esse ritmo. A tradicional estrutura musical é polifónica, normalmente constituída por 3 partes: um tema melódico próprio (violino>concertina, clarinete), acordes de acompanhamento (violão, viola) e solo (canto).

A polifonia mantém-se invariável, seja longo ou curto o desenvolvimento da letra.

O tom mais utilizado é o D Maior (RÉ Maior), devido à adequação à escala humana (masculina) do canto – duas oitavas, entre G’ e G”‘ – e ainda à fácil colocação dos dedos para formar o RÉ Maior da viola ou violão.

O Volume II do citado GCAD apresenta uma inédita e valiosa amostragem de 15 estruturas recolhidas de entre essas formas musicais.

O esquema métrico e harmónico permanece, mas oferecendo sempre virtualidades para o exercício da inspiração dos intérpretes, muitos deles (e modernamente também delas) admiráveis mestres do improviso.

Os temas das letras são variadíssimos, cobrindo um leque inesgotável, em que o simples e pacífico diálogo pode dar lugar ao exibicionismo, ao desafio, ao maldizer e ao perigo de incêndio de ânimos… e também ao amor (e ciúme), à religião, às festas, à política, às anedotas, às situações caricatas, e, até, a factos históricos solenes e respeitáveis…

A relativamente moderna concertina tem monopolizado a instrumentação, embora ainda consiga sobreviver a antiquíssima viola, o bombo e os ferrinhos. Mas ainda foi possível encontrar e gravar desgarradas com o ancestral violino/viola, ou com violino/concertina/viola (ver, por  ex., a estrutura 3). Também aparece o clarinete, mas ainda menos do que o violino.

Convém ainda notar que, enquanto os acompanhamentos instrumentais típicos mantêm a linha melódica durante todo o desenvolvimento da cantoria, o cantador inclui no texto muitas variáveis ao longo do seu improviso. Mais ainda: embora respeitando a unidade melódica, raramente canta exactamente as mesmas notas. Este facto torna inviável fazer uma recolha completa do repertório (riquíssimo) dessas obras – que só recentemente começaram a ser gravadas.

Como é habitual neste Site, apresentam-se alguns exemplos mais comuns, em mp3.

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EXEMPLOS

Desgarrada das vindimas (em tom menor) (GCAD I, 176) (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Boua noute, meus senhores,
Bou começar a cantar
ai, boua noute, meus senhores
bou começar a cantar.
pra espairecer a bindima
e as ubas que há pra acartar!
Quando chegam as bindimas
põem-se as trouxas de couro:
não há nada mais bonito
do que as bindimas do Douro!
As bindimas, bindiminhas,
as bindimas boas são_
fui de casa co’um cruzado
entrei com meio tostão.
Toca a apartar, apartar,
o gacho preto do branco;
também a mim me apartaram
do amor que eu amo tanto.
Dói-me a barriga com fome,
mas não é com fome de ubas:
é fome dos teus carinhos,
que tu, amor, me recusas.
Ó bideira, dá-me um gacho,
um gacho bem madurinho:
ó gacho, ó lindo gacho,
bais ser pró meu amorzinho!
Ó bideira, dá-me um gacho,
ó gacho, dá-me um respigo
para dar ao meu amor,
que anda raiboso comigo.
Dá-me da tua ramada
um gacho de moscatel,
que eu te darei um da minha,
quando maduro estiber.
– Nós somos bindimadeiras,
cortamos ubas doiradas,
– E nós, alegres, pisamos
as ubas por bós cortadas.
Nas bindimas, nas bindimas
é labuta sem parar:
as mulheres cortam nas ubas,
os homens bão pró lagar.
– Ó meu rico regadinho,
que lebas na tua abada?
– Um gacho de moscatel
que é pra dar à minha amada.
Bindimas, minhas bindimas,
as bindimas boas são:
se não fossem nas bindimas,
ou me casaria ou não.
Gachos de ubas bindimei,
deles bou fazer o binho,
e só dele probarei
no dia de São Martinho.
A bideira malvasia
dá bem ubas para comer,
mas também serbe pra dar
bom binhinho para buber.
Bamos o binho pisar,
perna abaixo, perna arriba:
o feitor já foi buscar
augardente prá barriga.
Tudo bebe, minha gente
prás ubas melhor pisar;
uma pinga de augardente
põe toda a gente a cantar.
Rapazes, bamos imora (=embora),
a meia-noite está dada:
senão tenho em minha casa
sermão e missa cantada!

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Desgarrada das pousas [GCAD I, 223]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Eu chiguei agora aqui,
eu chiguei aqui agora, (bis)
se é cedo, deixaime stare,
se é tarde, mandai-me imbora! (bis)
eu chiguei agora aqui,
eu chiguei aqui agora.
Raparigas desta terra,
cantemos com alegria!
se eu canto, é pra ‘sq’acere
as panas de todo o dia:
raparigas desta terra,
cantemos com alegria!
Quem canta seu mal espanta
quem chora mais o aumanta:
eu canto pra espalhare
a paixão que me atromanta!
quem canta seu mal espanta,
quem chora mais o aumanta!
E agora bou treminare,
bou-me imbora pra Jugueiros;
só têm de desculpare
sinhoras e cabalheiros:
e agora bou treminare,
bou-me imbora pra Jugueiros.

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Adeus, ó senhor patrão [GCAD I, 67]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

– Adeus, ó senhor patrão,
Não le devo nem um dia,
Mas antes me deve a mim
As noites qu’eu não dormia.
– Vai-t’embora, desgraçado,
Vai para a tua mulher;
Se morres, vais p’ra o inferno,
Nem o diabo te quer.
– Ó mulher’s, ó desgraçadas,
Por que vos não confessais
Aos delitos que fazeis
E aos corações que roubais?

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ESTRUTURAS

Desgarrada [estrutura 1] [GCAD II, 1242]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Desgarrada [estrutura 2] [GCAD II, 1243]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Desgarrada [estrutura 3] [GCAD II, 1244]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Desgarrada [estrutura 4] [GCAD II, 1245]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Desgarrada [estrutura 6] [GCAD II, 1248]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Desgarrada [estrutura 7] [GCAD II, 1249]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Desgarrada [estrutura 10] [GCAD II, 1243]  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

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UMA LETRA DE DESGARRADA (IMPROVISO)
(Vol II – p.1226-1229):
1º Cantador:
– Boa tarde, meus senhores,
Vivam filhos, vivam pais,
Vou dar daqui um abraço
A todos que me escutais
E mostrar como se canta
Em Festas e Arraiais!
2º Cantador:
– Canto como vós cantais,
[em festas e arraiais]
Por isso cantas tu e eu
Em Terras do Alto Douro
[onde o vinho é um tesouro]
E Distrito de Viseu
E Terras de Montemuro,
[eu estou a cantar seguro]
Onde este Fado nasceu.
– Melhores somos tu e eu:
[a viver debaixo do céu]
Também gosto de cantar
Cantigas à desgarrada;
Quando uma pessoa é boa
[e que não canta à toa]
Deve de ser respeitada;
Eu respeito-vos a todos:
[os mais velhos e mais novos]
também a ti, camarada!
– Continua a desgarrada,
[nesta bem bela noitada]
Eu levo tudo a eito:
Quero ver se, a cantar,
[nesta noite de luar]
Cantador, tu és perfeito;
Não me digas coisas feias,
porque, senão, eu rejeito.
– Olha, ninguém é perfeito!
[e se não viver com jeito]
E, mesmo na cantoria,
Mas hoje aqui, ao teu lado,
[a cantar um lindo fado]
Eu tenho muita alegria;
Mas se tu te portares mal,
[neste lindo arraial]
Eu vou tirar-te a mania!
– Tu não tenhas fantasia
[Estimado Zé Maria]
Que te podes enganar;
Tu tens pouca categoria
E eu posso-te apertar;
E a garganta que tu tens
Ela pode-se calar!
– Já te estás a arreliar,
Vem com calma, cantador,
Se já te estás a queimar
Eu vou tirar-te o calor;
Não me fales em calar,
Que eu sou muito falador!
– Escuta bem, cantador
[Já vi que tu tens valor]
Que cantas nos arreiais;
Já sei que tu falas muito,
Às vezes falas de mais;
É por isso que na vida
Não somos todos iguais.
– Não vales menos nem mais,
[a cantar nos arraiais]
Mas eu sou bem comportado,
Mesmo falando de mais,
[como vós apreciais]
Eu falo sempre acertado;
Mas tu, que falas tão pouco,
[e podes passar por louco]
Não falas bem em nenhum lado.
– Tu deves ter mais cuidado
Com o que estás a dizer,
Porque eu até fui rogado
Rapaz, pra te defender;
Como sabes, é verdade,
Mas já te ias a esquecer.
– Eu não te estou a entender,
Nem sei do que ‘stás a falar:
Se calhar foi noutro dia,
[por volta do meio-dia]
Quando eu estava a jantar,
Não consegui comer tudo
E tu foste lá ajudar!
– Agora, pra terminar,
Vou dizer-te, camarada,
Termina a tua cantiga,
Que a minha está terminada;
Já me falaste em jantar
E a barriga está sem nada!
– Acabou a desgarrada
[pra toda a rapaziada]
Entre estes dois cantadores;
Na cantoria do fado
[Amadeu aqui ao lado]
Inda não vi professores;
Nas cantigas de improviso
[além de termos juízo]
Mostramos nossos valores.
OBSERVAÇÃO:
Os versos em cada estrofe repetem-se às parelhas (dois a dois).
As inserções [escritas entre parêntesis rectos] são incluídas apenas na repetições, aleatoriamente, ao gosto e inspiração do cantador.
Tecnicamente, estamos em presença de um artifício poético presente nas cantigas de mestria e nas tenções trovadorescas medievais.
Sobre este assunto, ver a TESE INTRODUTÓRIA que abre o primeiro volume deste GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO.
Pode ser vista também neste site (produto: GCAD – Contextos histórico-literários na música tradicional

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GCAD_Contextos hist.-literários

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ALTO DOURO

UM PATRIMÓNIO HERÓICO,

também sublimado em

cantigas da Vinha, da Terra e do Amor

** In: Altino Moreira Cardoso – GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO, vol I – p. 9-41.

Miguel Torga pecou, ao omitir as cantigas das raparigas da nossa terra nos motivos que atrasam a entrada de São Leonardo na felicidade eterna.

Na Terra sublimada em Património Mundial, por produzir o vinho mais fino do Mundo, as cantigas também se associam ao sagrado festim do perfume do rosmaninho e da doçura do vinho mosto.

As cantigas do Alto Douro chegaram de Santiago de Compostela nos tempos do galego-português e de D. Afonso Henriques e, depois de séculos monásticos discretos, consolidaram-se e multiplicaram-se com as vindimas, ao ser criada, pelo Marquês de Pombal, a primeira Região Demarcada do Mundo. Para as apreciar devidamente, há que ir mais além e mais fundo: ao próprio galego-português e ao início da nacionalidade, em que Egas Moniz, em Lamego (no coração do Alto Douro), educou o jovem fogoso que foi o primeiro Rei de Portugal.

D Sancho I, ausente nas obras de fortificação da Guarda, é autor e objecto da primeira cantiga de amigo:

Ai, eu, coitada, como vivo

en gran cuidado por meu amigo

que ei alongado! Muito me tarda

o meu amigo na Guarda!

E D. Dinis é um dos maiores poetas trovadorescos, a par de D. Afonso X, seu avô.

Muitas das nossas cantigas conservam traços das antigas cantigas populares ‘de amigo’, que os três Cancioneiros com cantigas dessa época (C. Ajuda, C. Vaticana e C. Biblioteca Nacional), infelizmente, só conseguiram preservar uma ínfima parte, sobretudo no aspecto musical.

O trabalho de recolha da nossa música tradicional tem de tentar ir ao fundo dos Tempos, procurar e preservar as possíveis jóias escondidas em arcas anónimas, salvas milagrosamente da ignorância e da voracidade do tempo.

Um trabalho destes requer apreciável sentido histórico, muita sensibilidade e preparação poético-literária, musical e, ainda, informática.

 

I – ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-LITERÁRIO

Lamego, Braga, Porto, Guimarães e, depois, Vila Real, antigas e nobres terras do início da Nacionalidade, foram importantes pólos de consolidação da nossa Nacionalidade e de Romagem a Santiago de Compostela, a mais importante romagem da Europa, onde confluíam os povos de toda a península e da Provença, no Sul de França, para prestar homenagem ao Apóstolo que foi directamente escolhido e conviveu com Cristo e, depois, veio para o noroeste da Península cumprir o Seu mandato: “Ide por todo o Mundo…”.

Santiago era o Patrono da Cristandade em toda a Península. Aqui tomavam alento espiritual as Cruzadas contra os Mouros, até os expulsarem completamente. O mapa seguinte mostra as datas da libertação do Reino.

Ao mesmo tempo, as peregrinações ou Jacobeos (Tiago=Jacob) transformavam também Santiago de Compostela num centro difusor da Cultura Medieval, pois aí eram expostas ao púbico, as criações dos trovadores, jograis e segréis: as cantigas de amigo, amor e escárnio. Os agentes de todas as Artes, desde os saltimbancos e malabaristas aos músicos, pintores e poetas, também não perdiam a oportunidade de lá se exibirem perante audiências massificadas e, por vezes, privilegiadas pela presença mecenática de reis e grandes senhores.

O ano de 1999 foi Ano Santo Jacobeo e, ainda há meses, a UNESCO recebeu o pedido de declarar esta Cultura milenar como Património Imaterial. Demonstrava-se que as manifestações orais como a língua, os cantares, os ofícios, a música, as danças e o universo festivo e ritual têm uma presença constante nas duas comunidades durante todos estes dez séculos (XI-XXI). A catedral foi iniciada em 1075 e terminada em 1211 e estas datas são sincrónicas com as da fundação da nossa nacionalidade e da nossa literatura galego-portuguesa comum. A cidade de Lamego, tão decisiva na fundação da nacionalidade, foi conquistada definitivamente aos mouros em 1057, com o habitual auxílio das ordens religiosas militares ou militarizadas, todas elas ligadas à mística conquistadora e evangelizadora de Santiago de Compostela.

Logo após a descoberta do túmulo de Santiago, o grito de Fé e Guerra de D. Afonso Henriques e dos nossos primeiros heróis era: “Por Santiago!!”

Vejamos, a seguir, a coincidência cronológica da fundação do Reino de Portugal e do desenvolvimento do ideal de Santiago de Compostela e da cultura galego-portuguesa:

 

QUADRO DE DATAS

comuns a Santiago e à Fundação de Portugal

813    Descoberta do túmulo de Santiago

1057 Lamego conquistada definitivamente aos Mouros

1064 O Reino estende-se até ao Mondego

1071 Restauração da Diocese de Lamego

1075 Início da construção da Catedral de Santiago

1096 Conde D. Henrique inicia governo do Condado Portucalense

1096 Foral do Conde D. Henrique a Constantim de Panóias

1109 Nascimento de D Afonso Henriques

1113 Fundação do Mosteiro de S João de Tarouca (Cister)

1120 Ordem Militarizada dos Templários

1128 Batalha de São Mamede

 1128 EgasMoniz nomeado Tenente (= substituto do Rei, Comandante do castelo) de Lamego

1131  Fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra

1135  Conquista de Leiria

1136 Ordem Militarizada dos Hospitalários

1137 Tratado de Paz de Tui – Infante e Afonso, imperador de Espanha

1139 Batalha de Ourique

1140 Sé Velha de Coimbra – lírica provençal

1142-1144 Primeiras Cortes do Reino de Portugal em Lamego (Almacave)

1143 Tratado de Samora – Reconhecimento oficial do reino de Portugal

1144 Ordem Militarizada de Cister, Tarouca

1147 Conquista de Santarém e Lisboa aos Mouros e também Palmela

1158 Ordem Militarizada de Calatrava

1159 Doação do Castelo da Cera aos Templários (Tomar)

1160 Ordem Militarizada de Santiago e Tomada de Alcácer

1169 Sagração do Mosteiro de Tarouca

1173 O Papa Alexandre III designa D. Afonos Henriques como Rei

1176 Ordem Militarizada de Avis (ramo de Calatrava)

1185 Morte de D. Afonso Henriques

1189 Conquista de Silves e Alvor

1191 Carta de couto a Lamego, por D Sancho I

1209 Universidade de Cambridge

1211 Fim da construção da Catedral de Santiago

1248 Conquista de Sevilha

1249 Conquista do Algarve (Faro)

1253 Fundação da Sorbonne

1289 Foral de D. Dinis a Vila Real

1290 Fundação do Estudo Geral (Lisboa) por D. Dinis

1193 Ordem Militarizada dos Cavaleiros Teutónicos

1323 Ordem Militarizada de Cristo, D. João I (ramo dos Templários)         

1355 Morte de Inês de Castro

Os Mouros expulsos das terras eram substituídos por cristãos, que aí naturalmente dinamizavam a agricultura e preservavam as tradições culturais. A cristianização era, assim, acompanhada das outras formas de manifestação hauridas em Santiago: as produções poético-musicais acompanhavam os ideais religiosos e guerreiros.

Os principais nódulos durienses dessa influência (além da influência institucional e organizacional de Braga e Guimarães) situam-se em Lamego, Tarouca e terras constantes da riquíssima Tenência de Ega Moniz, concedida em 1128 (ver listagem anterior), que deram origem, depois, ao Distrito Administrativo de Lamego, ainda existente em 1835.

A Tenência de Egas Moniz englobava uma vasta zona, limitado, ao Norte pelo rio Douro e a Sul pelo rio Mondego, a Este pelo rio Távora (mas com Sernancelhe) e a Oeste pelo rio Paiva e terras de Arouca, Estarreja e Águeda. Incluía, portanto terras importantes, como:  toda a Região de Lafões e Alto Vouga (Besteiros e Tondela) até ao Dão e Mondego (Mangualde, Penalva) e, voltando a nordeste em direcção ao Douro, Sernancelhe, Tabuaço, subindo até ao Douro pelo rio Torto e Pesqueira.             Ver a figura:

 

LAMEGO foi reconquistada definitivamente aos Mouros por Fernando Magno em 1057, mas a diocese só será restaurada em 1071. Segundo a tradição, D Afonso Henriques viveu com Egas Moniz em Sande e as primeiras cortes do reino de Portugal ter-se-ão reunido em Lamego, na Igreja de Santa Maria de Almacave, entre 1142 e 1144, onde D. Afonso Henriques terá sido coroado Rei de Portugal pelo Arcebispo Primaz de Braga. Esta lenda, tal como muitas outras, foi utilizada para justificar a nacionalidade portuguesa, aquando da Restauração em 1640. Em 1191, D. Sancho concede carta de couto a Lamego, posteriormente a carta de feira anual é concedida por D. Dinis a 10 de Julho de 1292.

O Mosteiro de São João de Tarouca é um dos primeiros – se não mesmo o primeiro – da Ordem de Cister em Portugal (1113). Uma inscrição na fachada da igreja data o início da construção de 1152, e uma outra a sua sagração em 1169. Conserva o túmulo gótico do Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis, autor da Crónica Geral de Espanha de 1344.

É decisivo o papel dos mosteiros na estruturação territorial, técnica, artística e poética de Portugal medieval. Os primeiros esforços de povoamento e cristianização do actual território português são caracterizados, na Reconquista, pela afirmação político-administrativa e pela guerra, por um lado, e pela rentabilização da terra.

Será muito interessante verificar que as cantigas da Região do Alto Douro ainda conservam importantíssimas marcas desses tempos do início da nacionalidade, em que a mobilidade no noroeste peninsular se prestava à sua difusão, dado que, ontem como hoje, as peregrinações têm uma forte componente de lazer associada à intenção religiosa.

Noto que as cantigas populares galego-portuguesas não são as de amor, mas as de amigo, criadas pelas mulheres do povo, que as dançavam e cantavam nas suas rodinhas e serões – como comprova o insistente e repetitivo paralelismo semântico e métrico no número par de estrofes, no refrão, no encadeamento e leixa-pren, na alternância vocálica da rima (veremos adiante)…

Além dos trovadores e jograis, os próprios reis imitavam as cantigas femininas populares, para oferecerem às suas ‘amigas’.

Congelada no tempo a centralidade cultural galaico-duriense de Lamego e do seu nobre Distrito Administrativo, a tradição literária e folclórica do nordeste peninsular irradiada de Santiago voltou a ser impulsionada e vivificada (e, claro, também, às vezes, adulterada) pelas rogas que, no século XVIII, migram das regiões circundantes da Região Demarcada do Douro, a que cedo se juntaram as provenientes da própria Galiza; e a literatura ‘de amigo’ galego-portuguesa regressou como Fénix renascida das próprias cinzas, que reacenderam o mais lídimo folclore do nosso Alto Douro.

Assim, as rogas galegas substituiram os peregrinos dos jacobeos e reavivaram a convivência  galego-portuguesa que tinha sido interrompida durante séculos.

Ainda hoje, nomeadamente na Régua, existem muitos vestígios de nomes galegos. Além da couve-galega, de que se faz o caldo de berças, são denominadas galegas algumas variedades de plantas, ou os seus frutos, cultivadas no Alto Douro, como a oliveira/azeitona-galega, a videira-galega, o pêro-galego, a maçã-galega, o limão-galego, a erva-galega (espécie de azevém, espontânea no norte de Portugal), a silva-galega (da espécie das rosáceas, espontânea no norte de Portugal),etc. O esparregado é um puré feito também de couve-nabiça ou galega.

O vocabulário da língua portuguesa inclui muitos vocábulos que atestam a presença de galegos: galegada, galeguice (ajuntamento de galegos ou algaraviada) (DICIOPÉDIA).

Existem muitos nomes de famílias, de origem galega, como: Abrunhosa, Cibrão, Cassola, Agrelos, Alvim, Briteiros, Burguete, Cochofel, Carrapatoso, Cadilhe, Bugalho, Caetano…

Há tempos foi fundada a Associação Eixo Atlântico. Santiago é cidade da Euro-Região Galiza-Norte de Portugal. E, há poucos meses, foi solicitado o reconhecimento da Cultura milenar galego-portuguesa a Património Imaterial Mundial.

 

II – OS CANCIONEIROS MEDIEVAIS

                                                      Na figura: 

pormenor da página de um Cancioneiro (com a pauta musical)

As produções poético-musicais galego-portuguesas (cantigas de amigo, amor e escárnio) perder-se-iam completamente se não tivessem sido compiladas – só no século XIV e fragmentariamente – em três cancioneiros: o da Ajuda (CA), com 310 poesias, o da Vaticana (CV), com 1205 canções e o da Biblioteca Nacional (CBN), com 1597 canções. (figura).

O género medieval que se prolonga no Alto Douro não é a cantiga de autor, a ‘Cantiga de Amor’, mas a cantiga folclórica anónima, isto é, a ‘Cantiga de Amigo’, descoberta nas peregrinações a Santiago e logo adoptadas e imitadas pelos trovadores de toda a Peninsula nas cortes mecenáticas e nos focos laicos de irradiação cultural desse tempo.

Na Cantiga de Amigo, a iniciativa lírica, confessional, é da donzela. Este fenómeno é original e as jayras mouriscas não são nada que se lhe compare.

[As cantigas d’ amigo…] corpus de poesia amorosa de voz feminina que sobreviveu da Europa medieval e antiga. Oferece um campo ainda pouco explorado para o estudo da voz feminina, ou seja, do discurso, do direito, da sexualidade, da mentalidade, por muito que essa voz possa ser manipulada, os aspectos arcaicos destes poemas, a nível social, linguístico e musical, sugerem que essa voz é genuína nas suas origens.

Assim, lemos cantigas d’ amigo não apenas porque as achamos belas, musicais, engenhosas, eróticas, bem delineadas, mas porque são a fonte principal para um capítulo ainda por escrever na história da cultura europeia.

Rip Cohen – 500 Cantigas d’Amigo, Campo das Letras

 Nessa altura, as mulheres viam-se privadas (temporária ou definitivamente) da presença dos homens válidos, que eram requisitados para o ‘fossado’ ou ‘ferido’ (a guerra da Reconquista contra os Mouros e da Nacionalidade contra os Castelhanos). Este estado de coisas vigorou até à conquista do Algarve e prolongou-se, ainda, até à Aliança Inglesa já no início da segunda dinastia. Como quase nem havia velhos (nem crianças…), a mulher tinha fartos motivos para se tornar activa de forma poético-musical e revelar a sua intimidade e preocupações, até para substituir ou sublimar a privação da maternidade.

As cantigas de amigo galego-portuguesas têm um valor literário e sociológico elevados, o que se pode consubstanciar em algumas grandes características gerais:

A – A Coita de iniciativa feminina. Revela-se nas preocupações da donzela relativas ao seu amigo, integrado nos perigos e ausências das guerras (‘fossado’ ou ‘ferido’) da fundação e consolidação da nossa nacionalidade.

B – A Ruralidade. O sujeito poético (ou iniciativa lírica) é a rapariga do campo no seu ambiente: nas bailadas mostra-se sonhadora e sedutora, nas alvas ou serenas encara o dilema de dormir ou não com ele, nas barcarolas ou marinhas lembra a sua partida ou dialoga com as ondas sobre ele, encontra-se com ele na fonte ou no rio, nas cantigas de romaria atreve-se a procurar o amor…

C – O Animismo. Consiste no desabafo com a Natureza: as flores , o vento, as águas, as ondas…

A coita feminina, a ruralidade e o animismo englobam variados sentimentos de intimismo, confidência (mãe, irmãs, amigas), enlevo, cuidados, ansiedade, paixão, saudade, morte de amor, recusa de mexericos, confiança e insegurança, algum narcisismo…

 D – O Paralelismo é um conjunto de características poéticas formais e baseia-se na insistência contemplativa numa emoção (saudade, coita, etc.):

– o Número par de estrofes – processo adequado à dança em voz e coro, dois coros;

– a Tenção – diálogo, que antecede a desgarrada e a cantiga de desafio;

– o Leixapren – repetição do último verso da estofe anterior como 1º verso da estrofe seguinte;

– a Alternância vocálica da tónica – amigo/amado;

– o Refrão – bordão, apoio e síntese métrica da estrofe, ponto de encontro, charneira e partida para nova estrofe.

Para além do valor poético-literário e musical, as cantigas populares medievais e do Alto Douro legam-nos um manancial de pormenores sócio-culturais, que muitas cantigas ainda conservam, de modo inesperado, mas flagrante.

 

III – RAÍZES MEDIEVAIS
DAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

Neste capítulo será demonstrado que a tradição medieval das ‘cantigas de amigo’ apresenta uma continuidade muito significativa no cancioneiro do Alto Douro.

Essa continuidade manifesta-se através de importantes características, que acima concentrei em quatro fundamentais:

 

A – A Coita de iniciativa feminina

 A coita é, geralmente, derivada do ambiente de guerra: na ausência dos homens, no ‘fossado’ ou ‘ferido’, as mulheres tomavam a iniciativa de trocar confidências e manifestar o seu sofrimento. Isto é: a iniciativa da declaração amorosa é assumida pela mulher e não, como universalmente,  pelo homem.

Estudaremos este assunto através de alguns exemplos – de entre vários outros, dispersos ao longo deste livro:

 NAS CANTIGAS DE AMIGO

  1. a) Ai eu, coitada, como vivo
    en gran cuidado
    por meu amigo
    que ei alongado!
    Muito me tarda
    o meu amigo na Guarda!
Ai eu coitada como vivo
en gran desejo
por meu amigo
que tarda e não vejo!
Muito me tarda

o meu amigo na Guarda!

D Sancho I (CBN)

 

  1. b) Par Deus, coitada vivo,
    pois non ven meu amigo:
    pois non ven, que farei?
    Meus cabelos, con sirgo
    eu non vos liarei.

    Pero Portocarrero (CBN-CV)

Observação:

O sirgo faz parte da arte da tecedeira e pode ser considerado sinónimo de fita, melhor: passamanes (fitas ou galões entretecidos de fios de ouro, prata ou seda, com que se adornam móveis, peças de vestuário, etc.). Por este exemplo de ornato fino para os cabelos se poderá ver que as cantigas de amigo compostas por verdadeiros poetas (trovadores) perdem o carácter humilde da cantiga popular (a cantiga de amigo) espontânea da mulher do povo – comprometendo o seu valor folclórico mas institucionalizando este género literário.

 

  1. c) Como vivo coitada, madre, por meu amigo,
    ca me enviou mandado que se vai no ferido:
    e por ele vivo coitada!
    Como vivo coitada, madre, por meu amado,
    ca me enviou mandado que se vai no fossado:
    e por ele vivo coitada!

    Martin de Ginzo (CV-CBN)

As froles do meu amigo
briosas van no navio!
As flores do meu amado
briosas van eno barco!
Briosas van no navio
para chegar ao ferido
Briosas van eno barco
para chegar ao fossado

Refrão:

Idas son a frores
daqui ben con meus amores!

Paai Gomez Charinho (CV-CBN)

Na ausência do namorado, por vezes em perigo de vida, ela vive ‘coitada’ (coita=sofrimento) e, como em sinal de luto, não se embeleza com ornamentos.

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

Nas nossas cantigas já não existe a milenar separação medieval pela guerra, portanto já não se verifica ambiente social propício à dramática confidência. Mas permanecem muitas que expressam o sofrimento feminino e, muitas vezes, a paixão avivados pela emigração ou outra separação forçada. Transcrevo e sublinho alguns extractos significativos:

Ai que lindo!
Lindos olhos tem o Tónio,
inda agora reparei
se mais cedo arreparaba,
num amaba quem amei.
Anda cá, que eu já te quero
Anda cá, que eu já te quero,
anda cá, que eu já sou tua:
não no digas a ninguém,
meu amor!
nem às pedrinhas da rua!

 

A iniciativa, como nas cantigas de amigo, é sempre da mulher:

Anda cá meu namorado,
Qu’estás nas bandas de além.
Anda cá dá-me um abraço,
Que eu te quero tanto bem.
 
Que eu te quero tanto bem,
Que eu te quero até morrer:
Até debaixo da terra,
Meu amor, podendo ser!…

 

Coita e cuidados:

Q’ando t’eu num conhecia
nada de ti se me daba:
ai ai ai, sem pensamentos dromia
ai ai ai, sem cuidados acordaba.

ou:

Saudades são felores
Que se apanham no jardim;
Ai, ai, ai, a minha espera contigo
Ai, ai, ai, só à vista terá fim!

 

ou, ainda:

O meu coração tem penas
que não pode aliviar:
ó i ó ai,
foi-se embora o meu amor,
nunca mais há-de voltar!…

 

Outro exemplo de paixão é retirado de uma cantiga em que também é visível um encantador animismo que a transmite e revela:

Passarinho, se eu pudesse
num te interraba no chão:
mandaba fazer a coba
dentro do meu coração.

 

B – A Ruralidade

A vida na aldeia deixa inúmeros vestígios, quer nas relações humenas e de vizinhança, quer nas actividades – quase totalmente dedicadas à lavoura da vinha e do campo. Como possibilidade de encontrar rapazes, além da ida à fonte buscar água e ao rio lavar a roupa, havia os bailes locais, as desfolhadas e, sobretudo as romarias, que as raparigas não deixavam de aproveitar para se mostrarem aos rapazes, arranjarem namorados e, às vezes, ‘darem umas facadinhas’ na virtude…

 

Ida à Fonte, ao Campo ou ao Rio:

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

 Digades, filha, mha filha velida,
por que tardastes na fontana fria?
– os amores ey.
(…)
Cervos do monte a augua volviam
Os amores ey.
Mentir, mha filha, mentir por amigo,
nunca vi cervo que volvesse o rio
– os amores ey.

A demora da moça é explicada pela água turva pelos cervos, como acontecia nas fontes (poças…); mas a água era do rio e a desculpa não servia para a mãe vigilante… e é no refrão que o coro (como no teatro grego) dá a explicação: os amores ey (=tenho amores, tenho namorado ou estive a namorar…)

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

 Na conhecidíssima cantiga AS POMBINHAS DA CATRINA existe uma situação parecida, a perda de tempo com o namorado, com a agravante de:

eu parti a cantarinha
a dar água ao meu amor. (…)
Ó minha mãe, não me bata (…)

A rapariga também vai à horta buscar hortaliça para fazer a comida da casa. E pode encontrar, talvez, um novo amor:

Quando vou à horta,
quando vou e venho,
já me não importa
do amor que tenho!

 

Os Bailes (ou bailias):

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

  1. a) Eno sagrado, en Vigo,
bailava corpo velido:
amor ei!
En Vigo, eno sagrado,
bailava corpo delgado:
amor ei!
Bailava corpo delgado
que nunca houvera amado:
amor ei!

Martin Codax (CV-CBN)

 

A menina é elegante, graciosa, jovem e virgem e dança no adro (eno sagrado) de Vigo. Está enamorada e pronta para o amor!

Na cantiga seguinte, são três as moças enamoradas, que se juntam numa dança debaixo das aveleiras:

 

  1. b)
    Bailemos nós já todas três, ai amigas,
    so aquestas aveleneiras frolidas;
    e quen for velida, como nós velidas,
    se amigo amar,
    so aquestas avelaneiras frolidas
    verrá bailar.

A dança é estrategicamente tomada como poderoso apelo à sedução, pelos gestos e pelas formas do corpo, que serão avivadas pela ausência de mantos (ficarão em cós (=cintura da saia), ‘de corpinho bem feito’). As mães que cumpram as promessas ao santo, elas querem ser apreciadas pelos namorados:

  1. c) Pois nossas madres van a San Simon
    de Val de Prados candeas queimar,
    nós, as meninhas, punhemos de andar
    con nossas madres, e elas enton
    queimen candeias por nós e por si
    e nós, meninhas, bailaremos i.
 Nossos amigos todos lá iran
por nos veer e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas em cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós meninhas bailaremos i.

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

As moças são convidadas a virem dançar em grupo no terreirinho (o terreiro do Douro pode ser a eira de outras regiões) para se exibirem e arranjarem namorado:

 

Aqui, moças, aqui moças,
aqui, moças a bailar,
aqui, neste terreirinho,
um amor hei-de arranjar.

 

As Romarias:

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

São as ocasiões predilectas das moças, já que podem esgueirar-se por entre a multidão anónima e irem ao encontro do namorado, até enquanto as mães cumprem deveres e promessas de ordem religiosa. Afirmam morrer se a mãe as guardar (=proibir) de ir:

Ma madre velida, e non me guardedes

d’ir a San Servando, ca se o fazedes,

morrerey d’amores!

E se me vos guardades d’atal perfia

d’ir a San Servando fazer romaria,

morrerey d’amores.

E se me vos guardades, eu bem vo-lo digo,

d’ ir a San servando veer meu amigo

morrerey d’amores.

João Servando (CV, CBN)

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

No Alto Douro realizam-se, ainda hoje, algumas romarias tradicionalmente muito apelativas: os Remédios (Nossa senhora dos Remédios) em Lamego é a mais notável e concorrida; mas há outras, de que destaco o Socorro (Nossa Senhora do Socorro) na Régua (Peso) e, ainda, a Nossa Senhora da Serra, no alto do Marão.

No próprio Brasil existe, há largos anos, uma Irmandade de Nossa Senhora da Serra do Marão.

A estas romarias está muito ligada a dança da Chula, dança duriense por excelência. Pessoalmente, recordo a chula da Serra, as Desgarradas (de toda a noite) dos Remédios e os arraiais da Régua.

As raparigas tinham profundas razões para querer ir às romarias do Alto Douro, sobretudo aos Remédios, de frondosas árvores e escadarias:

 

– Ó minha mãe deixe, deixe,

ó minha mãe, deixe-me ire

ó arrial de Lamego

que eu bou e torno a bire!

 

A rapariga já deu uma desilusão à mãe, mas promete voltar direitinha desta vez.

A mãe (‘escaldada’) previne:

 

– O arrial de Lamego

é a tua perdição!

 

Também temos cantigas em que, receosa pela sua ausência ou doença, vai simplesmente rezar pelo namorado:

 

(…) deixe-me ir àquela festa:

tive o meu amor doente,

devo lá uma promessa.

 

Cantigas de ‘dormir com’:

NAS CANTIGAS DE AMIGO

 

Normalmente, a moça desses tempos austeros da Idade Média suspirava pela madrugada para ver o namorado, que tinha chegado ‘vivo e são’ do ‘fossado’.

Mas já se encontram documentadas situações em que a moça lamenta dolorosamente que a madrugada chegue tão cedo, pois o namorado vai ter de sair da sua cama:

 

De que morredes, filha,

a do corpo velido?

– Madre, moiro d’amores

que me deu meu amigo,

Alva é, vai liero!

A filha, com a cumplicidade da mãe, recebe o namorado para dormir com ela, mas este desaparece logo que branqueia uma ponta da madrugada.

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

O pedido do rapaz para ir dormir com a rapariga baseia-se, sobretudo, na fragilidade emotiva de uma despedida. antes da partida dolorosa ‘para militar’. A moça geralmente resiste às razões do rapaz, como se vê nesta significativa ‘tenção’ de namorados:

– … eu entro pelo escuro

e saio pela madrugada!

– Não entras pelo escuro

nem sais pela madrugada,

eu sou rapariga nova

não quero ser difamada.

 

Noutra cantiga do Alto Douro, porém, não só a aceitação se dá, como a própria mãe (confidente e cúmplice) o consente. No caso de conhecimento de coabitação e desfloramento mesmo consentido (a que se chamava, sempre, enganar a donzela), o rapaz era obrigado a casar ou pagar uma pesada indemnização, a ir para a prisão ou, mesmo, para o degredo.

Perplexo, diz o moço, acusado e ameaçado de cadeia pelo pretendido sogro, por ‘enganar’ a filha:

 

– Eu enganar, enganei-a

o povo não no sabia:

eu ia dormir com ela

porque a mãe dela

mo consentia…

 

Mas, às vezes, as coisas corriam às mil maravilhas:

 

– Lebantei-me manhã cedo,
de manhã. de madrugada,
a apanhar a folha à rosa
que pra mim staba gardada.

 

 

C – O Animismo

NAS CANTIGAS DE AMIGO

Num ambiente rural, mentalmente limitado, a moça, desgostosa e apaixonada mas totalmente isolada, apenas tem como recurso a comunhão com a natureza. Aí a podemos situar partilhando os seus pensamentos junto ao mar, ao rio, à fonte, às flores, às aves do céu…

A cantiga animista mais célebre, em que a namorada, com o namorado longe, na guerra (no ‘fossado’),  se vê compelida a perguntar às flores do pinheiro notícias do namorado, é esta, de D. Dinis:

 

Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo

ai Deus e u é?

(…)

Se sabedes novas do meu amigo (…)

Se sabedes nova do meu amado (…)

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

 

O animismo nas cantigas do Alto Douro recorre também aos elementos da natureza circundante para transmitir os sentimentos íntimos. Bem perto estão as videiras, com quem a moça dialoga familiarmente, assumindo o seu lugar:

Chora a bideirinha

ela chora, chora,

pelo seu amore

que se bai imbora.

(…)

pelo seu amore, que se bai embarcare.

 

E:

Chora a bideira,

deixa-a chorare

chora a bideira

pois quer amare.

 

Chora a bideira

não chora não,

chora a bideira

meu coração.

 

Outra:

Ó bideira, dá-me um gacho,

ó silba, dá-me uma amora,

ai ai ai, amor dá-me o teu retrato,

ai ai ai, quero bê-lo a toda a hora.

 

Outra forma de animização, com transferência afectiva:

 

– Passarinho, se eu pudesse

num te interraba no chão:

mandaba fazer a coba

dentro do meu coração.

 

Por vezes, é o vento encarregado de levar a trazer as imensas saudades:

Este ventinho que corre

vem da terra do meu bem…

se me trazes soidades,

pega-as lá, leva-as também.

 

Se a separação é provocada pela serra alta, pede à serra que se abaixe:

Abaixa-te, ó serra grande

que me tapas em quem penso,

quero ver o meu amor

a acenar-me com o lenço.

 

A madrugada do dia do reencontro está cheia de promessas de amor:

A madrugada lá bem lá bem,

atrás da serra, toda contente,

bem dar abraços, bem dar beijinhos,

fazer carinhos a toda a gente!

 

Deixo para o fim, na exemplificação deste raro e original processo de animização da natureza, dois flagrantíssimos exemplos, que de tanto andarem na boca de toda a gente passam despercebidos:

Ó oliveira da serra

que o vento leva a felor

ó i ó ai

só a mim ninguém me leva

ó i ó ai

para o pé do meu amor.

 

O outro é o PAPAGAIO LOIRO:

Papagaio loiro

de bico dourado,

leva-me esta carta

ao meu namorado.

 

Ele não é frade

nem homem casado:

é rapaz solteiro

lindo como um cravo!

 

 
D – Aspectos Formais comuns
às cantigas galego-portuguesas e do Alto Douro

o paralelismo métrico, fónico e semântico

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

 

Ondas do mar de Vigo,

se vistes meu amigo

e ai Deus, se verrá cedo!

 

Ondas do mar levado,

se vistes meu amado!

E ai Deus, se verrá cedo!

 

Se vistes meu amigo

o por que eu suspiro!

e ai Deus, se verrá cedo!

 

Se vistes meu amado

por que ei gran cuidado!

e ai Deus, se verrá cedo!

MARTIN CODAX   (CV 884. CBN 1227)

 

Esta cantiga de amigo é, quanto à forma e conteúdo, uma paralelística pura – género poético–musical exclusivo do galego-português do noroeste peninsular.

Contém, portanto, todas as seguintes características do paralelismo:

  1. Número par de estrofes,
  2. Adaptação lógica ao canto e à dança – para dois coros, voz e coro, etc.
  3. Refrão: e ai Deus, se verrá cedo!
  4. Paralelismo semântico: repete as mesmas insistências motivadas pela ‘coita’.
  5. Tem encadeamento perfeito:

– o 2º verso da 1ª estrofe é o 1º da 3ª

– o 2º verso da 2ª estrofe é o 1º da 4ª

– e assim sucessivamente, quando há mais pares de estrofes.

  1. Tem alternância vocálica das tónicas [-i– < > –a-] dos versos:

([Vigo<>amigo<>suspiro…]-[levado<>amado<>cuidado…])

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

Haverá ainda marcas deste processo poético formal, denominado paralelismo – mesmo imperfeito ou parcial – nas cantigas do Alto Douro?

Há, sem dúvida, e em boa percentagem de incidência.

Escolhi dois poemas (letras de cantigas) deste cancioneiro:

 

  1. a) Esta é que era a moda

que a Rita cantava

Lá na praia nova, olaré,

ninguém lhe ganhava!

 

Ninguém lhe ganhava,

ninguém lhe ganhou!

Esta é que era a moda, olaré,

que a Rita cantou!

 

Esta é que era a moda

que a Rita cantou

Lá na praia nova, olaré,

ninguém lhe ganhou!

 

A MODA DA RITA tem as seguintes características do paralelismo:

  1. Paralelismo semântico, pois repisa a mesma ideia até ao fim: cantava-ganhava, cantou-ganhou…;
  2. Alternância vocálica [-a– <> –ou] (ganhava < > ganhou, etc.)

Tem, parcialmente:

  1. Encadeamento ou repetição programada de versos da estrofe anterior; tem paralelismo parcial, o leixa-pren, que é a retoma do último verso da estrofe anterior.

Portanto, só não tem:

  1. Número par de estrofes
  2. Refrão.

 

Segundo exemplo:

  1. b) – Ó Delaide, ó Delaidinha,

tua mãe está-te a chamar:

– eu bei sei o que ela quer:

não me deixa namorar.

 

Não me deixa namorar,

ela também namorou:

minha mãe já não se lembra

do tempo que já passou.

 

Do tempo que já passou,

do tempo que já lá vai:

minha mãe já não se lembra

quando namorou meu pai.

 

Quando namorou meu pai

tinha ela a minha idade:

minha mãe já não se lembra

do que fez na mocidade!

 

 

A cantiga DELAIDE, DELAIDINHA (também constante no presente cancioneiro do Alto Douro) ainda se aproxima mais da cantiga de amigo pura, apresentando estas características:

  1. Tem número par de estrofes; e, consequentemente:
  2. Tem adaptação ao canto e dança (2 grupos – solo e grupo);
  3. Tem refrão;
  4. Tem paralelismo semântico completo;
  5. Tem leixa-pren perfeito até ao fim, embora sem o encadeamento perfeito;
  6. Tem alternância vocálica rudimentar, apenas com base no leixa-pren.

 

Das seis características do paralelismo, só falta uma: o encadeamento perfeito!

Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados. Eles estão distribuídos ao longo deste livro, geralmente anotados à margem.

Anoto também casos de dobre (repetição simples de uma palavra ou expressão) e mordobre (repetição de formas da mesma palavra ou expressão), artifícios que já consignados na Arte de Trovar galego-portuguesa.

 

Pelo exposto se vê que existem inegáveis argumentos para considerar muitas das cantigas do cancioneiro do Alto Douro como descendentes e continuadoras das cantigas de amigo do cancioneiro galego-português. Entraram com a fixação da nacionalidade, com base em Lamego, e persistiram durante séculos. Merecem ser não só recolhidas, compiladas e catalogadas, mas ainda estudadas de modo sistemático, pelo seu valor histórico, social e literário.

NOTA:

Aconselho vivamente a leitura do capítulo relativo à Lírica Trovadoresca Galaico-Portuguesa, numa História da Literatura Portuguesa.

 

IV – A CANTIGA TRADICIONAL
COMO VALOR CULTURAL E POÉTICO

 

Tratando-de de uma forma cultural de grande importância diacrónica, é preciso, basicamente, respeitar a cantiga tradicional. Mais ainda: quanto mais rica e antiga for a herança cultural, mais preparação e cuidado de aproximação requer. Um monumento com cinquenta anos facilitará mais o acesso cultural do que um outro com séculos de existência.

Estando o folclore associado a uma época e cultura recuadas no tempo, para o entender é necessário apreender  as principais coordenadas que o caracterizam. No nosso caso, o cancioneiro do Alto Douro, de modo pelo menos latente, herdou formas e conteúdos poético-musicais com dez séculos de existência. Para entender e, depois, apreciar esta riquíssima herança, é necessário aprender a lê-la nos poemas, a ouvi-la na música e a enquadrá-la no devir da História. Não se aprecia (nem deprecia…) o que não se entende.

O actual ‘espectáculo de folclore’ tem um pouco de culpa da depreciação em que muitos o catalogam. Hoje dança-se qualquer modinha em passo e compasso acelerado, como se fosse dança–jazz, com as mesmas inflexões e rituais, e ninguém toma dois minutos de introspecção para explorar algo de literário, musical ou relativo à indumentária, aos instrumentos, ao ambiente que a cantiga possa transmitir…

A leviandade de um procedimento receptivo sem cultura cada vez mais varrerá a nossa música e poesia ancestral da memória colectiva. Tanto quanto preservar o verdadeiramente essencial, é preciso renovar o figurino e apresentar as nossas cantigas de modo adequado a cada uma delas, valorizando a sua mensagem e embelezando-as através de uma arte renovada, conduzida por gente de cultura. Uma cantiga é uma obra vivenciável, ou recriável, através dos tempos, mantidas que sejam as características essenciais a qualquer obra de arte.

Explicar a mensagem de uma cantiga não é tarefa fácil, antes exige bons conhecimentos de história local e muita sensibilidade poética e musical.

No caso do nosso cancioneiro do Alto Douro, associáveis à forma e ao conteúdo das cantigas de amigo medievais, muitas cantigas apresentam outros dados importantes herdados desse tempo de grande profundidade espiritual: os Símbolos.

Numa recolha e apresentação de cantigas tradicionais não pode faltar a observação das sugestões simbólicas, que tornam transcendente a música, poesia e dança e as transfiguram em rituais de mágica tentativa de aproximação e fruição com o inconsciente colectivo ancestral e inacessível a não iniciados culturalmente.

Passa-se com as cantigas o mesmo que com a observação de um painel, uma rosácea, um alto relevo medieval: é preciso um esforço, por vezes grande e não acessível a todos, para interpretar o figurativo alegórico que muitas maravilhas oferecem.

As minhas observações apensas às cantigas explicam alguns símbolos em concreto; mas o leitor poderá aprofundar este aspecto da ciência etnográfica, pois algumas interessantes surpresas existem nas cantigas das levianamente denominadas gentes ‘simples’.

Como as catedrais, as cantigas estão cheias de elementos iconográficos carregados de simbologia.

Se a presença da videira não se estranha, já que estamos no Douro Vinhateiro, já é mais difícil explicar certos mitos subjacentes no inconsciente colectivo. Como explicar a tão abundante presença do loureiro, laranja, oliveira, rosa, cravo, limão, amendoeira, cidreira, lírio…, ou do castanheiro, morangueiro, amora, rouxinol, trança, vento, viagem, violeta, lua, fonte, maçã, meia-noite, navio, pão, pinheiro, pomba, ouro, avental, bode, borboleta, cabelos, cuco, hera, laço…

Por outras palavras: por que motivo não há lugar nas cantigas para outros elementos tão ou mais abundantes no terreno alto-duriense do que os citados? Por exemplo: pereiras, marmeleiros, pessegueiros, etc.?

A simbologia, pouco explícita por definição, deve ser tida em conta na interpretação da mensagem de muitas cantigas. Uma cantiga contém um poema que, não raro, pode separar-se da música e constituir por si próprio uma obra de arte. Alguns poemas são, até, comuns a várias músicas (como, aliás, a mesma música também o pode ser a vários poemas).

Sem o estudo dos símbolos, não se pode ter acesso a muitas mensagens dos poemas, em que estes podem estar presentes de forma quase cifrada, pois os sentimentos humanos, sobretudo no amor, têm muitos mistérios e claro-escuros, por vezes bem freudianos ou, até, kafkianos.

Quem conseguisse descobrir a origem de certas mensagens inscritas como símbolos hieroglíficos nas músicas populares, penetraria no mais fundo da alma humana!

Deixo aqui uma listagem de muito resumidas interpretações de alguns símbolos presentes (em maior ou menor grau) nas nossas cantigas do Alto Douro:

– O Loureiro é talvez o símbolo mais abundante: aparece mesmo junto à janela do quarto das raparigas (e por ele apetece subir…). Deduz-se facilmente que muitas casas tinham um loureiro perto ou, mesmo, encostado às paredes. É que se julgava antigamente que nas trovoadas (e as do Douro são terríveis…) o loureiro protegia das faíscas. Para além disso, o loureiro é a árvore de Apolo: do sucesso, da glória, da imortalidade. Conceitos importantes na vida e no acesso ao amor.

–  A Laranja é outro símbolo, muito abundante nas cantigas. Como os frutos com caroços, é símbolo da fecundidade. Nalgumas culturas davam-se laranjas aos jovens casais. A oferta de laranjas às raparigas significava um pedido de casamento. É curioso como nas nossas cantigas também existe este gesto, que, como tudo o que é simbólico, pode funcionar, ou não, conscientemente. A cor de laranja, entre o amarelo e o vermelho, simboliza o ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido. Será neste sentido que, ainda hoje, os monges e lamas do Tibete usam esta cor nas suas vestes.

– A Flor da laranjeira é outro dos grandes símbolos da Região do Alto Douro. O ramo tradicional das noivas é feito da branquinha flor de laranjeira. Além do cheirinho mimoso, simboliza a pureza e a virgindade. Nenhuma viúva – ou rapariga não virgem – se atreveria a levá-lo, por uma coerência assumida que dignificava e santificava a dádiva do corpo perante o altar.

– A Flor, em geral, é símbolo da aurora, da Primavera, da juventude, da virtude, da delicadeza feminina, etc. Mas é possível uma simbologia mais profunda: a flor é o símbolo do princípio feminino da passividade e da perfeição espiritual. A floração é o regresso ao centro, à unidade, ao estado primordial, a que está ligada a infância e o estado edénico. A floração é, ainda, a consecução de uma alquimia interior, da união da essência e do sopro, da água e do fogo. Por outro lado, também pode simbolizar o ciclo vital e o seu carácter efémero.

– A Rosa é o símbolo da Mulher por excelência: na sua delicadeza de pétala, na sua forma de cálice receptor  em campânula de oferta, no seu perfume de convívio agradável. Uma rosa vermelha é oferecida universalmente como símbolo de uma amor ardente, mas discreto e delicado…

– O Cravo é o símbolo masculino, nas cantigas muitas vezes apontado à rosa.

–A Amendoeira, além de símbolo da fragilidade por as suas flores não resistirem facilmente às últimas geadas, é o antiquíssimo símbolo de Átis, nascido de uma virgem que o concebeu fecundada por uma amêndoa. Daqui se explica a relação entre a amendoeira e a Virgem Maria. No judaísmo é através da base de uma amendoeira que se penetra na cidade misteriosa da Luz, que é uma morada de imortalidade.

O seu fruto é um símbolo fálico e pode fecundar directamente uma virgem, sem qualquer intervenção sexual. Há ainda uma crença, a nível europeu, de que a jovem que adormecer debaixo de uma amendoaira e sonhar com o seu namorado pode acordar grávida.

– O Amor é fonte ontológica de progresso, na medida em que não significa apropriação, mas união. A libido ilumina-se na consciência, onde se pode transformar numa força espiritual de progresso moral e místico. Pelo amor ambos crescem, ao mesmo tempo que se tornam cada vez mais iguais a eles próprios. Quando pervertido, destrói o valor do outro e, do centro unificador procurado, transforma-se em princípio de divisão e de morte. Eros significa o desejo de prazer; psique é a alma, tentada a conhecer este amor. Os pais representam a Razão, que providencia os preparativos necessários. O palácio (ver isto aflorado numa das cantigas deste livro Ó ANA, Ó RICA ANA), condensa as imagens de luxo e luxúria, todas as produções dos sonhos.

– A Maçã apresenta riquíssima simbologia, por vezes aparentemente contraditória. É o pomo da discórdia de Páris; o pomo de ouro das Hespérides, que são frutos da imortalidade; é o fruto proibido a Adão e Eva no Éden; é a maçã do Cântico dos Cânticos que representa (segundo Orígenes) a fecundidade do Verbo Divino. É árvore da Vida, do Bem e do Mal, do Conhecimento unificador que confere Imortalidade, e, também, do Conhecimento separador, que conduz à Queda. No seio da maçã, as sementes formam uma estrela de cinco pontas. Comer a maçã é correr o risco de abusar da inteligência para conhecer o Mal, da sensibilidade para o desejar, da liberdade para o fazer.

– A Noite é o abandono cego ao desconhecido. Representa o inconsciente e a aventura. Para os gregos é a filha do caos e a mãe do céu e da terra. Também gerou o sono e a morte, os sonhos e as angústias… E a ternura… E o engano. A noite percorre o céu, envolta num vém sombrio, acompanhada das suas filhas, as Fúrias (dos crimes) e as Parcas (da morte). É o tempo das conspirações, das gestações, das germinações. Também apresenta um duplo aspecto: o das trevas onde fermenta o futuro e o da preparação do dia seguinte, donde brotará a luz da vida. Álvaro de Campos invoca-a:

Vem, Noite, antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio, (…)

No teu vestido franjado de Infinito.

Nossa Senhora dos sonhos impossíveis que procuramos em vão (…)

E que doem por sabermos que nunca os realizaremos…

– A Lua simboliza a dependência e o princípio feminino, bem como a periodicidade e a renovação. O eterno retorno e a alternância cíclica fazem dela o astro dos ritmos da vida: controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir: águas, chuva, vegetação, fertilidade… É yin relativamente ao Sol, que é yang na nomenclatura oriental; na China, a festa da Lua realiza-se no equinócio do Outono – correspondente à nossa época das vindimas. Comporta ainda muita da simbologia da Noite.

– A Amoreira, para muitos poetas e místicos (são quase o mesmo) é a árvore onde se ergue o Sol nascente e os seus ramos são a marcha ascendente do Sol. Conta Ovídio que as flores eram brancas de início, mas tornaram-se vermelhas na sequência do suicídio de dois amantes, à sombra de uma amoreira, junto a uma fonte.

– O , ou Laço, simboliza as diferentes decisões que se tomam ao longa da vida, que se vai desatando até à morte. O laço das nossas cantigas (do avental, da ‘belusinha’…) está associado a aitudes importantes no amor: assumir um compromisso, perder a virgindade, respeitar a palavra ou a jura dada…

– O Sirgo é como uma fita, mas ornamentada com nós ou com sementes, pérolas… e aparece nas cantigas em que a menina está pensativa, preocupada (terá leves ou graves motivos para isso) com o cumprimento do compromisso por parte do ‘amigo’ ou namorado.

– A Oliveira é muito rica de simbologia: paz, purificação, fecundidade, força, vitória, recompensa… na Idade Média simboliza, também, o ouro e o amor.

Atribui-se à sua madeira o poder de neutralizar venenos. A Cruz de Cristo era feita de oliveira e cedro. Para o Islão é a árvore central.

– A Videira está ligada ao vinho, que é a alegria, como o pão à sobrevivência, à vida. Antigas tradições colocam no paraíso a videira como árvore da vida. Uma boa esposa é, para o seu marido, como uma videira fecunda (Salmos). Jesus proclama que é a verdadeira cepa e só nEle os homens poderão não secar e ser deitados no fogo para arder. O sangue do Messias é o vinho da Nova Aliança. O vinho é a imagem do conhecimento, da verdade (‘in vino veritas’) e da imortalidade. A videira também transporta a sugestão de mulher nua, com inerentes valorizações sexuais e maternais do leite. Leite (natural) e vinho (laborado) confundem-se no prazer juvenil dos místicos. A videira também simboliza a imortalidade e é essa a razão pela qual o francês diz do álcool eau-de-vie, o gaélico whiskey (=chave da vida), o persa maie-i-shebab (=bebida de juventude) e o sumério geshtin (=árvore da vida), etc.

Ligado aos vinhos está, ainda, o poder viril.

– O Rouxinol é símbolo da perfeição do seu canto. A sua magia embala a noite e faz esquecer os problemas da vida. Para John Keats, a perfeição que ele evoca tão intensamente parece tão frágil que provoca desilusões ainda mais dolorosas quando chega o dia.

– A Violeta simboliza o segredo. A cor violeta estimula as glândulas sexuais da mulher, enquanto o vermelho activa as do homem.

Parece fácil entender o simbolismo subjacente na cantiga VIOLETAS AO COMPRIDO

Muitos escritos cristãos da Idade Média foram lavrados em letras douradas sobre pergaminho violeta: o amarelo é a Revelação e o violeta é a Paixão de Cristo encarnado. Passou facilmente a ser símbolo do luto e também o da obediência e submissão. Numa versão da MACHADINHA, o ramo de violetas liga-se a isto. Existe também o costume de colocar num fio ao pescoço uma pedrinha violeta, para proteger a criança das doenças e também torná-las obedientes.

– A Pomba começa por ser o símbolo da Paz na Arca de Noé e já inclui o conceito de pureza, simplicidade, harmonia e esperança. Representa também a sublimação do instinto, nomeadamente do eros. Noutro patamar, a pomba simboliza a alma. No Novo Testamento é a imagem do Espírito  Santo. Na origem destes símbolos estão predicados como a acessibilidade social, a brancura e suavidade das penas, a graciosidade do porte e o arrulhar meigo e doce.

– A Tecelagem simboliza a estrutura e movimento do universo. É um trabalho de criação e parto. Quando o tecido está terminado, a tecedeira corta o fio ‘umbilical’ e pronuncia a fórmula da bênção da parteira ao cortar o cordão umbilicar e receber o bébé. O símbolo de tecer é a aranha, que tira de si própria a teia. Muitos ícones tradicionais têm nas mãos fusos e rocas e presidem aos nascimentos e ao desenrolar dos dias e ao encadeamento dos actos. As fiandeiras abrem e fecham ciclos da sua vida e da dos outros. Este misticismo aplica-se ao amor, dando as fiandeiras provas de grande personalidade e maturidade, assumindo ou rejeitando a relação amorosa por inteiro.

– O Avental simboliza não só as relações artesanais e do trabalho, mas a cobertura da nudez como a parra de Eva. Cobre o invólucro corporal que encerra a perfeição. Colocado na parte inferior do corpo deixa livre a parte superior para pensar, pois não só de pão e trabalho vive o homem.

– A Trança é um símbolo fechado, pessimista, sem espaço de fuga, ao contrário da espiral, que lhe vem associada em antítese. Está ligada à mulher comprometida, com o seu futuro irremediavelmente definido.

– A Cidreira servia para fazer chá, que alivia(va) muitas espécies de maleitas. Cultiva(va)-se perto de casa, com a salsa e a hortelã. Também era usada em mezinhas medievais de magia. Na cantiga CIDREIRA ver que a planta está ligada ao animismo, pois a moça desabafa com ela o queixume de o namorado preferir a liberdade da rua a assumir um compromisso de amor.

– Os Perfumes têm várias simbologias: o da rosa é o dos Namorados, o do jasmim é o dos Reis; o incenso é o de Deus; os utilizados para embalsamar simbolizam a Memória. O do cipreste simboliza as Virtudes. A aromaterapia está a iniciar uma prática baseada nos perfumes e na sua capacidade de tirar o véu a imagens do subconsciente. Já se pensa que a heliotropina suscita imagens de flores e jardins e desperta a sensualidade e a vanilina provoca imagens alimentares…

– A Perdiz é tida como símbolo de uma mulher bonita pela beleza dos olhos. Como a pomba tem a  graça e a beleza, mas com o apelo sensual que a pomba não tem. Comer a sua carne é adquirir poder de sedução. A tradição cristã faz dela símbolo da tentação e da perdição, mas também foi considerada protectora contra os venenos.

– O Cuco é o símbolo do ciúme, de que ele é o aguilhão e, mais ainda, do parasitismo, por pôr os ovos em ninho alheio. Demonstra preguiça e incapacidade de construir, estabelecer e governar a própria vida e gerir o seu futuro.

Segundo uma lenda popular, o primeiro canto do cuco na Primavera pode ser uma promessa de riqueza, se quem o ouvir tiver nesse momento consigo uma moeda.

No Alto Douro, perguntavam as raparigas (e nós imitávamos…), ao ouvir de perto o primeiros cantos do cuco:

Cuco de à beira, cuco de à beira, quantos anos m’ dás solteira?

 

V  – O DESAPARECIMENTO DAS MÚSICAS

Provada a existência de características remanescentes dos poemas das cantigas da lírica de amigo medieval galego-portuguesa, conservadas na Região do Douro (com centro político, militar e social em Lamego) e, depois, com o estabelecimento da Região Demarcada, avivadas pela descida das rogas para as vindimas, resta-nos verificar que as músicas correspondentes desapareceram completamente, e de modo natural, com acontece ainda hoje, por poucos as saberem  escrever.

O desaparecimento das músicas das cantigas foi favorecido por importantes circunstâncias histórico-sociais e musicais:

 

Circunstâncias histórico-sociais:

A estabilidade portuguesa conseguiu-se depois da conquista do Algarve aos Mouros e, depois, com a Aliança Inglesa, que eliminou o perigo Castelhano. Entretanto, D. Dinis pôde consolidar o País e desenvolver a agricultura e D. Fernando criou duas estruturas de génio, para a época: a Lei das Sesmarias (1375), que obrigava os vadios a trabalhar a terra e a Companhia das Naus, mútua de pescadores, que iniciava e protegia a nossa indústria da pesca.

Do ponto de vista familiar e social, a chegada dos mancebos da guerra, o acesso ao trabalho e a estabilidade motivaram grande animação afectiva e concorrência entre homens e mulheres.

Este facto teve repercussões importantes:

  1. a) Desaparece o ambiente de crise, que mantinha as mulheres isoladas entre si mesmas, podendo dedicar-se, e discretamente, apenas ao canto e dança dessas originais e belas cantigas de amigo;
  2. b) Desaparece, claro, a necessidade de exprimirem os seus cuidados, a sua coita pela sorte dos amigos em perigo;
  3. c) Aparece a concorrência entre sexos: os rapazes traziam fome de amor: a oferta e a procura alargam-se em sentido geométrico;
  4. d) Tal concorrência desenvolve outras formas de vestir, de cantar e bailar e… de pensar;
  5. e) O crescente optimismo em relação às capacidades do Homem abre as portas ao Humanismo (clássico) e fecha o alçapão da Teocracia (medieval);
  6. f) As novas concepções positivas, aliadas a técnicas de charme amoroso e sedução, em que o corpo é glorificado – segundo o princípio ‘mens sana in corpore sano’ – originam severas reservas da Igreja quanto às exibições (geralmente em cós);
  7. g) O Clero, sempre muito atento aos costumes, proibiu as danças nos adros das igrejas e apenas as tolerava nas esplanadas dos santuários, dada a evolução mundana que começaram a ter, quer no conteúdo das letras, quer na dinâmica das músicas e das coreografias, quer, ainda, nas oportunidades e atitudes de acesso ao amor.
  8. h) Mais tarde, já no tempo negro dos Inquiridores, a Igreja ibérica passou mesmo a considerar a dança como uma das provas da identidade das bruxas e dos feiticeiros.

 

No entanto, muitas culturas atribuem valor, mesmo transcendente, à dança: nos mistérios de Elêusis da antiga Grécia, eram celebradas danças rituais e iniciáticas; no antigo Egipto, as danças eram também de índole religiosa e baseavam-se nos mitos dos deuses; no próprio Antigo Testamento, existem danças rituais, como, por ex. a de David em veneração da Arca da Aliança.

A dança tem uma vertente estética, mística, erótica, numa manifestação da energia primordial.

Nos primeiros tempos do Cristianismo, as igrejas incluíam danças nos seus rituais, que foram proibidas mais tarde pelo seu carácter sensual e feminino. As danças resistiram até aos nossos dias nos rituais profanos do Carnaval (carne+vale=adeus, carne).

Isto é: um punhado de pormenores de fulcral importância cultural para a manutenção e desenvolvimento das nossas tradições folclóricas enquanto membros e co-herdeiros da Cultura nordestina peninsular, depois da independência.

 

Quanto ao desaparecimento material da música original das cantigas, dever-se-á ter em conta os factores seguintes:

– o primeiro está relacionado com o citado desconhecimento da escrita musical. Nos três Cancioneiros acima citados (CBN, CA, CV) poucas cantigas são acompanhadas pelas respectivas pautas;

– o segundo é que, posto de lado o clero, os eruditos não tinham sensibilidade tradicionalista ou conservadora suficiente para com este tipo popular de música e literatura. Isso ficou patente no desaparecimento precoce de toda a lírica trovadoresca. Mesmo o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende não colecciona quaisquer músicas, muito menos populares: apenas poemas da corte.

– o terceiro é comum à nossa própria época, em que se caíu num analfabetismo funcional tão opaco que até já impede a leitura dos poetas. Mesmo a ancestral sabedoria popular transmitida de geração em geração está a perder receptores; já se lamenta que, quando morre uma velha, é mais uma enciclopédia que desaparece para sempre…

– o quarto é correspondente à falta de interesse do Clero (que detinha a exclusividade do conhecimento da escrita musical) em relação às cantigas profanas, veiculadoras das renovadas alegrias de viver. A Igreja mantinha grandes reservas sobre as actividades lúdicas do povo, que era encorajado a participar activamente nos autos festivos, alguns ainda em acção (Natal, Semana Santa…) mas desencorajado de manifestações profanas.

Desaparecimento das músicas por

Circunstâncias musicais:

– o quinto motivo relaciona-se com a crescente e irredutível inadequação da música medieval à exteriorização de sentimentos de novo optimismo, inerente à recente época de paz e estabilidade. A esperança numa vida mais plenamente realizada ultrapassa naturalmente o carácter estático, o luto e a intimidade impostos pelas circunstâncias sócio-literárias das cantigas de amigo, em que o homem – pai, irmão, vizinho, amigo, namorado – estava em perigo, no ‘fossado’ ou ‘ferido’.

O gregoriano, música expressamente criada para os actos religiosos, era também veículo musical das cantigas galaico-portuguesas. Tomando como ponto de partida a pauta gregoriana de Ondas do mar de Vigo, vou tentar (de forma aleatória e especulativa, note-se) ilustrar isso mesmo:

 

Música medieval – gregoriana:

On-das do mar     de  Vi-go – 7 sílabas

 

 

 

1     2     3    4         5    6   7        sílabas

Estas 7 sílabas espraiam-se por nada menos de 20 notas musicais!

 

Transcrição para pauta actual:

On-das do mar de Vi-go

1      2     3    4     5   6  7             –  7 sílabas métricas;

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sol lá dó si dó ré dó dó si lá   dó  si  dó ré dó si   lá   si   lá      sol

1    2   3   4  5   6   7   8  9 10    11 12 13 14 15 16 17 18  19      20          –  2 0  n o t a s   m u s i c a i s !!…

 

As figuras mostram, mesmo a quem não conhece uma nota musical, como faltava dinamismo à música medieval promiscuamente sagrada e profana… gregoriana.

O gregoriano ainda hoje desenvolve poderosas emoções ao ser cantado e escutado; mas o povo, quando dança, precisa de música medida (sim, também mexida). Como a música medieval não estava medida em compassos, a letra era prolongada em intermináveis melismas e as sete sílabas do verso Ondas do mar de Vigo são musicadas em nada menos do que 20 sílabas – o triplo das necessárias!

 

Mas vamos tentar descobrir uma evolução musical, a partir do seguinte excerto de uma cantiga (de amor), já transcrita para a escrita musical moderna:

 

 

 

 

Em primeiro lugar, as ‘extensões’ (melismas) desta música de amor são tão ‘retorcidas’ como os de uma religiosa, de súplica de perdão a Deus– o Kyrie eleison (em grego), que significa Senhor, tende piedade de nós:

 

 

 

A letra (grego, grafado em caracteres latinos) contém 8 sílabas.

A música emprega 29 unidades de tempo (25 notas/colcheias + 4 delas com 2 tempos/ semínimas).

 

Como é visível, não há diferença entre a música religiosa e a dedicada a Dona Leonor.

A adequação silábica da música de dona Leonor ao verso respectivo, evoluiria, em três fases, conservando a final tónica a (lá):

 

 

 

(1) Par Deus, ai,    do–na   Le-o—nor

(2) Par Deus, ai,        do–na   Le—o—–nor

(3) Par Deus, ai,      do—–na   Le—o——-nor

– O primeiro módulo, sem medida, aparentemente tão nu e simples, corresponde ao original;

– o segundo já apresenta medida – compasso binário – baseada na acentuação das palavras;

– o terceiro junta a melodia à medida, respeitando sempre a acentuação.

 

Apresento também uma hipótese (especulativa) em sentido inverso, isto é, partindo da forma actual para uma forma virtual primitiva.

Escolhi a cantiga Ó NAZARÉ, que poderia imaginar-se assim, numa fase intermédia:

 

 

 

Ó Na–za—-,  Na–za–,    Ó Na–za– meu a–mo-re—-, Tu   cho–ras  e’eu in-da_a-qui ó Na-za-,   que   fa– quan-do_eu me for!

Separei por acentos tónicos o verso – podendo-se marcar na pauta o futuro compasso binário.

OBS – Estes pequenos exemplos apenas pretendem mostrar (…muito grosso modo…) que a música gregoriana das cantigas medievais se apresentava com pouco respeito pela acentuação tónica das palavras e sílabas, o que eliminava à partida a possibilidade de ritmo externo e interno. A própria leitura era, assim, relativa. É que não havia sequer tonalidade, pois o latim e o grego baseavam a medida na quantidade vocálica (longas e breves) e não na sílaba tónica. O verso Greco-Latino é formado por pés em que se alternam sílabas longas e breves. Isto dava lugar a interpretações de grande variedade, de acordo com a subjectividade de cada intérprete. Nas interpretações actuais do gregoriano (se esta música pressupõe subjectividade, pressupõe liberdade e expressividade infinita), torna-se indispensável a pré-definição melo-rítmica de um maestro sensível e sabedor, para que possa surgir aquela magia indefinível que Bach, nas suas fugas, dramaticamente procurava.

Na evolução que levou à música moderna, o verso é dividido em sílabas e estas hierarquizadas relativamente à tónica, formando uma nova métrica poética, a que a música se subordina:

O verso Por Deus, ai, dona Leonor será preparado para ‘levar música’ deste modo:

 

 

 

 

 

Por Deus ai do-|-na Le-o-nor – isto é, terá 8 notas, com acento principal na tónica final (-nor) e acentos secundários na 4ª (do-). Logo: 4ª e 8ª sílabas. Há versos (mais longos do que este) que comportam três acentos internos. Aqui, o ritmo adequado é o binário.

As sílabas citadas corresponderão à nota mais forte (a 1ª) do compasso.

O verso também pode dividir-se assim: Por Deus ai do-na Leo-nor! Considerei ditongo a sequência vocálica áspera -eo- (embora o ditongo seja formado com áspera+branda ou vice-versa). Neste caso, ficamos com um verso de 7 sílabas – redondilha maior, muito usada na poesia popular.

O ritmo manter-se-á, mas o acento secundário (que geralmente divide o verso ao meio) passa a ser ai – que não deixa de ser, também, um elemento importante no contexto de dor que o poeta exprime.

 

 

 

 

por      Deus           ai,            do——–na       Leo———–nor!

A comunicação, o diálogo e a dança, entre pares, rapazes e raparigas, gente de ‘sangue na guelra’, nunca podia ser feita assim… a ‘gaguejar’!

A própria língua, tal como na música, sofreu (e desde a mesma altura) uma enorme evolução,  no sentido de eliminar arestas e tempo, para facilitar a comunicação, pela soberana lei do menor esforço. Veja-se este exemplo:

Vestra mercede(m) (Latim) > Vostra mercede > vossa mercê > vossemecê            > vosmecê > vomecê > você > v’cê >

Quem teve um avô disciplinador, ou até pai, sabe como não se podia tratá-lo por você! Mas a simplificação do vocábulo era o sinal do desgaste do tempo… e da vida.

Por isso, a evolução musical tinha de levar, como levou, de facto, a um sistema silábico, em que a nota corresponde basicamente a uma sílaba, adequada ao ritmo natural da dança: binário (dinâmico) ou ternário (mais discreto e estático).

Estava dada a sentença de morte (ou, pelo menos esquecimento) às músicas das cantigas literárias profanas. O Cancioneiro da Biblioteca Públia Hortênsia, no séculoXVI, já apresenta a divisão das frases através dos actuais compassos.

 

VI – TENTATIVAS DE RECUPERAÇÃO
DA ‘ARCA PERDIDA’

 

O fim da Idade Média, se, por um lado, conduziu às ‘luzes’ da cultura Clássica, com a descoberta de um Mundo Novo até então desconhecido, por outro trouxe o nivelamento geral pela cultura greco-latina e o imperdoável desprezo pelas culturas autóctones populares subjacentes à formação das várias nacionalidades, entre as quais a galego-portuguesa.

O Classicismo vigorou entre nós durante três séculos.

Em trezentos anos perderam-se da memória escrita autênticos tesouros da literatura e da música popular. Ficaram apenas na memória oral colectiva, subjacente ao etnos dos povos.

As jóias poético-musicais do Povo só começaram a ser procuradas, valorizadas e coligidas a partir de meados do século XVIII, quando as orientações estéticas pré-românticas e românticas julgaram ver na poesia do povo um sinal da mística ancestral e do inconsciente colectivo, selado à identidade das Nações. Assim, autores como Herder e os irmãos Grimm, na Alemanha, e Percy, no Reino Unido, realizaram os primeiros trabalhos de pesquisa e registo.

Em Portugal, o primeiro romanceiro remonta à primeira geração romântica, devendo-se a sua organização pioneira a Almeida Garrett (1843), que o compilou com rimances ouvidos às criadas, na sua infância portuense.

Mais tarde, Teófilo Braga e Carolina Michaëlis de Vasconcelos ampliaram o trabalho, comparando versões e tentando abrir caminhos na linha da classificação e da interdependência dos textos. São respigados da tradição portuguesa os romances anónimos do ciclo carolíngio e da Távola Redonda, vários romances mouriscos e contos de cativos, algumas lendas piedosas, xácaras e coplas de burlas.

O romanceiro português e o espanhol constituem uma unidade que não é possível separar, visto que há pelo menos seis séculos que ambos os países vêm colaborando na reelaboração dos romances populares.

Mais perto dos nossos dias, surgem grandes compiladores e estudiosos da nossa Etnografia e Folclore, com destaque para Adolfo Coelho (1847-1919), José Leite de Vasconcelos (1858-1941), António Rocha Peixoto (1868-1909) ou Jorge Dias (1907-1973).

As obras de recolha de todos estes pioneiros são imprescindíveis para o trabalho de compilação e estudo, mais dificil a cada ano que passa.

A recolha de gravações apenas pôde começar a ser feita já no século XX, com César das Neves, Pedro Fernandes Tomás, António Joyce, José Diogo Correia, Kurt Schindler, Gonçalo Sampaio, António Marvão, António Mourinho, Armando Leça…

Os últimos grandes compiladores e estudiosos são da segunda metade do século XX: Rodney Gallop, Vergílio Pereira, Fernando Lopes-Graça, João Ranita Nazaré – que implementou e incluiu nos currículos académicos a Etnomusicologia.

Espero que os nossos conservatórios consigam ensinar aos Músicos do Futuro o supremo instinto da alma duma cantiga popular – que reside no fundo do coração e pulsa eternamente na sua transcendência, na sua intimidade, na sua simplicidade…

… e é tão discreta como a divina ‘alma’ de um violino.

 

 

Sintra, 4 de Março de 2006 [editado em 7-7-2020]

Altino Moreira Cardoso

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GCAD_RIMANCES Medievais

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Este livro é uma separata do Vol II e III do GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO e inclui as pautas, com um estudo teórico-literário.

 

 

O Vol III do GCAD enquadra globalmente este assunto (pgs 1483 > 1606):

Extractos:

C – RIMANCES

A CULTURA DO DOURO, COMO A PORTUGUESA em geral, enraiza desde a primeira hora no Nordeste Peninsular centrado no galego-português, tendo como traços de união as Cruzadas e Peregrinações com pólo em Santiago de Compostela. Aqui radicam milenarmente (além de todas as artes) restos de Canções de Gesta e narrativas de cego nas Feiras, vindas de todo o lado da Ibéria e da Provença.
Parte substancial dos nossos rimances provém daqui.
Mas existe um outro filão, ainda pouco explorado, situado no Nordeste Trasmontano, onde, nas segadas, convergia o homem do Douro e o da raia leste do Duero. Muitos rimances conservam, no conteúdo e na linguística, o forte traço castelhano aí adquirido.
Os homens sem trabalho eram rogados de forma semelhante aos cardanheiros das rogas. Caminhavam longos quilómetros até às searas, cantando e tocando em ranchada. O trabalho era duro, mas o ritmo do braço era ajudado pelo canto compassado dos rimances, cujos versos tinham a usual acentuação binária, a mais apropriada ao ritmo e dinâmica do género histórico (épico).

Do alto da sua torre a dama estava a raivar
ou: Palavras não eram ditas e o cavaleiro a expirar.

Cada verso está dividido ao meio, em dois hemistíquios, como os grandes poemas épicos, que narram factos histórico-lendários, sobre-humanos, ocorridos com heróis e heroínas, pois só o extraordinário se gravava e perpetuava na memória colectiva (não havia escrita, ou o narrador não sabia escrever): o marido traído, o assassino cruel, a mulher raptada e morta, o pai tirano…
Garrett, o pioneiro das recolhas deste género poético-musical, atribui aos rimances cantados pelas criadas de Gaia a magia que se experimenta(va) no Douro: maravilha e calafrios provenientes da narrativa extraordinária, monocórdica, misteriosa e trágica.
Estes sinais situam as narrativas musicais em tempos medievais de distâncias, medos, prepotências e guerra. Garrett, como introdutor do próprio Romantismo português, assume o eco romântico do ambiente heróico de luta dos povos pela independência que está na génese das nacionalidades da Europa moderna e deixa-se facilmente seduzir, também, pelos conflitos obscuros da alma humana. São estas, precisamente, as grandes impulsionadoras do movimento romântico!
Garrett, na obra precursora DONA BRANCA desenvolve uma temática de rimance – embrionariamente presente, por ex., no rimance O CID ATRÁS DE BÚCARO (p.989), em que a princesa Bernarda, nas muralhas de Valência, encarregada pelo seu pai, D. Afonso VI, de entreter o ‘mourinho’ com boas falas, dando-lhe tempo para o apanhar, faz o contrário: avisa-o e ele foge:

– Entretém-me esse mourinho, de palavra em palavra;
as palavras sejam poucas, e d’amores venham tomadas.
(…)
– Vai-te daí, ó mourinho, que vem o meu pai e te mata!
os cavalos d’el-rei meu pai já tropeçam na calçada.
– Não tenho medo ao teu pai, nem à sua gente armada,
que o teu pai não tem cavalos como a minha égua parda!

D. Branca é filha de D. Afonso III, guardada no mosteiro de Lorvão (e, depois, em Burgos) e corresponde à paixão de Aben-Afan, príncipe defensor de Silves, que a rapta. O Rei Português e os seus Fidalgos recorrem à força e a magia para recuperarem a honra. Com a conquista de Silves, Aben-Afan morre e D. Branca enlouquece.
Assim, para além do valor poético-musical, este género literário folclórico é dotado de enorme valor histórico e étnico, pois nele estão embutidas riquíssimas pistas documentais, evocadoras das gestas do fundo passado medieval português e europeu.

Algumas temáticas de rimances do Alto Douro:

A – Rimances épicos
– Perseguição de Búcar pelo Cid (Ver Canções de Gesta – EL CANTAR DE MIO CID)
B – Carolíngios (Exemplificar… todos) (Analisar a narrativa como introdução a todos, ou a este capítulo)
– Morte de Oliveiros, D. Gaifeiros, Alta Vai a Lua Alta, Belardo e Valdevinos …

C – Militares – Por exemplo o baseado na Batalha do Lepanto (1571) travada a partir de Veneza com armadas de  República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e Estados Pontifícios, sob o comando de João da Áustria.
D – Mouriscos – O Dia de São João …
E – Bíblicos  – O Filho Pródigo …
F –Presos e Cativos– O Cordão de Oiro – A Cativa …
G – Regresso do Marido – A Bela Infanta – O Conde Flores – Gerineldo …
H – Amor Fiel – O Conde Ninho – Porque não Cantas, ó Bela? …
I – Amor Desgraçado – Febre Amarela – Morte de D. João …
J – Esposa Desgraçada – A Devota da Ermida – A Mal Casada – Bem Cantava a Lavadeira …
K – Mulher Adúltera – Claralinda – Frei João – Bernal Francês – Conde da Alemanha …
L – Mulheres Matadoras – A Galharda – A Serrana Matadora …
M – Raptos e Violações – Rimances do Cego – Vila Viçosa …
N – Incesto – Silvaninha … O – Mulheres Sedutoras
– Gerineldo – A Filha do Imperador de Roma …
P – Mulheres Seduzidas – Morte de D. João …
Q – Aventuras Amorosas  – Indo Eu por Esta Rua – A Criada Honrada …
R – Religiosidade – A Tentação do Marinheiro – Romance do Cego (Santa Iria) – O Lavrador da Arada – A Fonte Clara – Alta Vai a Lua Alta – Santo António – Nossa Senhora Lavadeira – A Confissão de Nossa Senhora – Noite de Natal …
S – Milagres de Amor – Guimar …
T – História de Portugal Rainha Santa – A Nau Catrineta – Santo António de Pádua…
U – Vária Temática – A Mulher Avarenta – A Filha do lavrador …

Muitos rimances apresentam inúmeras variantes. Anotei uma ou outra mais significativa, mas, regra geral, optei por escolher a que me parece mais genuína e lógica. É difícil exercer um critério seguro num género que exige grande cultura linguística, musical, étnica e histórica
Os Rimances de Cordel ou de Cego são ainda mais radicais e apresentam também grandes pistas sócio-culturais, sobretudo ao nível do quotidiano popular, com grandes doses de miséria humana:
– Mulheres sedutoras e seduzidas, abandalhados (eles e elas), amor desgraçado, prepotências, suicídio, incesto, assassinato do cônjuge, infanticídios, fratricídios, parricídios, mortes violentas, abandonos, cenas de ‘faca e alguidar’, assuntos picarescos, de feiras, cantilenas de ‘putedo’, bebedeiras, partidas grosseiras de rapazes, larachas de caserna…

A importância cultural e civilizacional destas narrativas, dada a sua penetração na alma humana, é, obviamente, muito grande, também no campo da Linguística, pois, devido à sua antiguidade, é possível encontrar neles marcas diacrónicas de valor incalculável de certos estratos da evolução intermédia da Língua Portuguesa. Essas marcas podem ser de ordem
lexical ou vocabular: (ex. meu corpo boto ao mare>…deito…); castelhanismos: maçanal (pomar de maçãs); balcão.om (varanda), panais (panos, tecidos), etc.,etc.. Também são abundantes os castelhanismos: perro…
morfo-sintáctica: ex. (aposta ganhada (<ganha), perguntara (< perguntou, mais-que-perfeito em vez do perfeito); dificuldade no emprego dos conjuntivos: se virens (vierdes); se déreis (derdes); para que tindes (tenhais); embora o bídens (=vejais) pobre; formas próprias de segundas pessoas no perfeito: viestes(tu)/viésteis(vós); perdoastes(tu)/perdoásteis(vós); não haverá mal se Deus não queira (não quiser), nós vayamos (conjuntivo vamos), etc.,etc..
– fonética: ex. ausência de contracção-crase em alguns vocábulos: ex. cé-u (com 2 sílabas, ainda como no étimo coe-lu.m)> em vez do actual céu (1 sílaba); ou pa-i (de pa-tre.m) com duas sílabas em vez do actual pai, contraído em crase, numa só sílaba; tem-le dado>tem-lhe dado; Caterineta (<Catrineta); despois (>depois); a lua i-alta (epêntese do -i- para evitar o hiato da gutural); epênteses, como em ademirado, etc.,etc..
Seria muito útil elaborar-se um mapa linguístico destas formas intermediárias ou arcaicas, conservadas na Arca da Tradição Oral, bem no coração documental da Nossa Língua.
Obs.: Também nos rimances não adapto e uniformizo toda a ortografia das letras, antes tento conservar a forma como as recebi na fonte.

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RIMANCES MEDIEVAIS

RIMANCEIRO DO ALTO DOURO

Este livro destaca, em 365 páginas, os 120 rimances que fazem parte do

GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO,

volume II, com 640 páginas, que incluem:

TUNAS RURAIS – RIMANCES – CANTARES RELIGIOSOS – CANTIGAS DA VINHA AVULSAS, DESGARRADAS…

EXEMPLOS DE RIMANCES

Aldininha [GCAD II] 931  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Aldininha, ó Aldinha, queres ser minha namorada?
Eu com ouro te vestia e com prata te calçava.
– Cale-se lá, ó meu pai, isso não pode ser;
Eu sou a sua filha e não sou sua mulher.
O pai, assim que soube, que Aldininha namorava,
Mandou fazer uma torre p’ra Aldininha ter fechada.
Esteve lá uns oito dias sem comer nem beber nada
E aos fim dos oito dias já a sede lh’apertava.
Subiu-se a uma janela, à mais alta que a torre tinha,
E avistou a sua irmã na varanda da cozinha.
– Ó irmã da minha vida ò da minha infeliz sorte,
Trazes-me uma pinguinha d’ água, serei tua até à morte.
– Dava, dava mana minha, a mim pouco me custava;
O papá deixou escrito que o pescoço me cortava.
Subiu-se a outra janela, à mais alta que a torre tinha,
Avistou a sua mãe a bordar em prata fina.
– Ó mamã da minha vida ó da minha infeliz sorte,
Trazes-me uma pinguinha d’água,serei sua até à morte.
– Dava, dava filha minha, a mim pouco me custava;
O papá deixou escrito que o pescoço nos cortava.
Subiu-se a outra janela à mais alta que a torre tinha,
Avistou o seu irmão na janela da cozinha.
– Ó irmão da minha vida ou da minha infeliz sorte,
Trazes-me uma pinguinha d’ água, serei tua até à morte.
– Dava, dava mana minha, a mim pouco me custava;
O papá deixou escrito que o pescoço me cortava.
Mandou todos os caixeiros levar água Aldininha
E o primeiro a lá chegar casaria com Aldinhinha
O primeiro a lá chegar foi o caixeiro-viajante;
Ao dar água a Aldininha… ela morreu num instante!

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Condessa, condessinha [GCAD II] 943  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

– Condessa, ó condessinha, condessa do Aragão:
Venh’ te pedir uma filha de tantas que elas são.
– Minhas filhas não tas dou, nem por ouro nem por prata,
nem por sangue da lagarta, oh que belas qu’elas são.
– Tão contente como vinha, tão triste me vou a achar;
pedi uma filha minha, das mais belas que elas são.
– Minhas filhas não tas dou, nem por ouro nem por prata,
nem por sangue da lagarta, oh que belas qu’elas são.
– Tão contente como vinha, tão triste me vim a achar;
pedi uma filha tua, condessa não ma quis dar.
– Volta atrás, ó cavalheiro, serás uma mãe de mães;
darei-t’uma filha tua, se ma estimares bem.
– Estimo, estimarei, sentada numa almofada,
fiando continhas d’ouro; salta cá, ó minha amada.

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A Juliana [GCAD II] (915)  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

– Tu que tens, ó Juliana, que andas tão triste a chorar?
– Que hei-de ter, ó minha mãe, D. Jorge vai-se casar!…
– Bem te disse, minha filha, não quiseste acreditar:
o namorar de Dom Jorge era só pra te enganar.
Já lá baixo vem Dom Jorge, montado no cavalinho:
– Bons dias, ó Juliana! – Vem com Deus, ó Dom Jorginho!
Disseram-me ali, Dom Jorge, que estavas para casar…
– É verdade, Juliana, eu te venho convidar:
no dia do casamento, tu irás acompanhar
a minha bem querida noiva até junto do altar.
– Espera um pouco, ó Dom Jorge,enquanto eu vou ao sobrado
buscar vinho de há sete anos, que te tinha reservado.
– Eu não queria, Juliana, que venho muito suado;
mas aceito um poucochinho, pra agradecer o teu cuidado.
– Que fizeste, ó Juliana? que deitaste neste vinho?
Tenho já a vista escura, nem vejo o meu cavalinho…
e a minha mãe, lá em casa, a julgar seu filho vivo!
– Também a minha julgava que te casavas comigo!…

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O soldado (Tu que tens, ó soldadinho?) [GCAD II] 1028  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

– Tu que tens, ó soldadinho, qu’andas tão triste na guerra?
Ou te morreu pai ou mãe ou gente da tua terra?
– Não me morreu pai nem mãe nem gente da minha terra;
Ando triste por a amada, que eu deixei e vim p’r’à guerra.
– Monta lá naquele cavalo, soldadinho, vai à terra;
ao cabo de sete i-anos, soldadinho volta à guerra.
Lá no meio do caminho, má figura encontrou.
– Que fazes, ó soldadinho? Que fazes agora aqui?
– Vou ver a minha amada, dias há que não a vi.
– Tua amada é morta, é morta, que eu bem na vi.
– Dize-me as sinas que levava, para m’eu fintar em ti.
– Levava meias de seda, sapatinhos de chàgrim,
e o cabelo entrançado, que ela o pediu assim.
– Anda, i-anda, meu cavalo, qu´inda tens muito p’r’andar;
na campa da minha amada tens tempo de descansare.
Abre-te, campa sagrada, minha amada quero ver;
quero-le beijar o rosto antes da terra a comer.

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A Juliana ou O Luisinho  [GCAD II] 998  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

– Aonde vais, ó Luisinho, ai, ai, na tua bela montada?
– Venho ver-te, ó Joaninha, ai, ai, no camarote assentada.
– Disseram-me, ó Luisinho, que estavas pra te casar…
– É verdade, ó Joaninha, e venho-te convidar.
– Espera aí, ó Luisinho, espera mais um bocado:
quero que proves do vinho que pra ti tinha guardado.
– Ai de mim, ó Joaninha, não sei que tinha o teu vinho,
ainda agora que o bebi já num enxergo o caminho!
– Deitei-lhe espinha de cobra e sangue de rosalgar (*)
pra que saibas, Luisinho, que já não te vais casar!
– E a minha mãe a cuidar que tem o seu filho vivo!
– Também a minha cuidava que te casavas comigo!
– Venha papel, venha tinta, venha também escrivão,
para eu deixar escrito o pago que as mulheres dão!
– Aqui está papel e tinta e também o escrivão,
para eu deixar escrito o pago que os homens dão!…
(*) produto (ex. cogumelo) com sulfureto de arsénio.

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Rimance do cego 1 (Santa Helena) [GCAD II] 1009  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Çaramago verde, verde çaramago
Vou para a Galiza, vou pra o Santiago
– Acorda, Helena desse teu dormir,
Vai ver o cego à porta a pedir.
– Se o cego toca dá-lhe pão e vinho,
Se o cego não toca dá-lhe pão sozinho.
– Nem quero do pão nem quero do vinho,
Só quero que a Helena me ensine o caminho.
– Pega esta roca, carrega-a de linho,
E vai, Helena, ensina o caminho
Vês aqui, ó cego, vês aqui o caminho.
– Adiante, adiante mais adiantinho,
– Adiante, cego, lá vai o caminho.
– Sou curto de vista, não vejo o caminho
– Valha-me Deus e a Virgem Maria;
Quanta gente passa de cavelaria!
– Esconda-se, Helena debaixo da minha capinha;
– Ai, Nunca vi cego com tanta anergia,
Nunca he visto capas de tanta valoria:
Por fora remendonas e por dentro floridas
Com um cinto d’ouro e uma espada assassina.
De condes e duques eu fui pretendida
E agora de um cego me vejo vencida!…

OUTRA VERSÃO DA LETRA:

Era meia noite, quando o cego veio,
bateu três pancadas na porta do meio.
– Abra-me essa porta, abra-me esse postigo,
venha dar a esmola ao pobre mendigo,
– Minha mãe, acorde do doce dormir,
venha ouvir o cego cantar e pedir!
– Se ele canta e pede, dá-lhe pão e vinho;
se ele não quiser, mostra-lhe o caminho!
– Não quero o seu pão, não quero o seu vinho,
quero que a menina me ensine o caminho.
– Pega, minha filha, na roca e no linho,
vai acompanhar o triste ceguinho…
– Acabou-se a roca, acabou-se o linho,
vá com Deus, ó cego, já está no caminho.
– Leve-me, ó menina, até mais além:
sou curto de vista, não enxergo bem…
– Diga-me, ó menina, minha bem amada,
lá na sua terra como era chamada?
– Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;
por aqui, agora, Iria, a coitada!…
De condes e duques eu fui cortejada,
e, agora, de um cego estou cativada!…
– Cala-te, ó Iria, não digas mais nada,
que eu sou o mesmo conde que te desejava.
– Adeus, minha casa, com trinta janelas,
adeus, minha mãe, que tão falsa me eras,
adeus, ó varandas, adeus, ó quintais,
adeus, meus irmãos, para nunca mais!

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A má sogra (Santa Helena)  [GCAD II]  917 (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

– Quem m’ dera naquel’ monte, ou mesmo naquele vale,
quem me dera mais além, nos palácios de meu pai.
– Se os desejos forem muitos, caminho para além vai.
– E se vier o meu Pedro, quem le há-de pôr o jantare?
– Se vier o teu D. Pedro, eu le porei de jantare
e da caça que trouxere, dela a ti te hei-de mandare.
Um por ua porta a saire, outro por outra a entrare.
– Donde está a minha Helena, que não me põe de jantare?
– A Helena, ó meu filho, foi pra casa de seu pai:
a mim chamou-me perra moira e a ti filho de mau pai.
– Ala, ala, meus criados, depressa e não devagare!
Jornadinha de três dias em três horas se há-de andare!
Aparelhem meu cavalo, que temos muito pra andare!
Apertem-lha bem a silha, alarguem-lhe o peitoral!
Jornadinha de três dias em três horas se há-de andare!
– Pelo meio do caminho encontrou o seu cunhado:
– Deus vos guarde, ó meu cunhado, tendes um filho varão!
– Prás alegrias que eu tenho, quer seja varão ou não!
– Onde está a minha Helena, que já a quero levare?
– Paridinha de hora e meia, como a queres tu levare?
– Quer parida, quer prenhada, comigo ela há-de marchare!
– Cale-se lá, minha mãe, já s’ devia ter calado:
mulher que é bem casada, faz o que o marido manda.
Deia-me o meu colete, que me quero apertare.
Subiu para o seu cavalo e tratou de caminhare.
Mas no meio do caminho suspirou e deu um ai.
– Porque suspiras, Helena, pois que dás tamanhos ais?
– Olha para o meu cavalo, se queres ver como ele vai
todo banhado em sangue, que deste corpo me sai!
Quem me dera aqui um clér’go, que me queria confessare!
– Confessa-te a mim, Helena, que Deus t’há-de perdoare
dos teus pecados pequenos: dos grandes não há vagare.
A quem deixas o teu ouro, que o haja de lograre?
– À minha mana mais nova, que bem o há-de estimare.
– A quem deixas os teus fatos, que os haja de gastare?
– À minha mana do meio, que bem nos há-de estimare.
– E a quem deixas o teu filho, que to haja de criare?
– À perra da tua mãe, causadora do meu mal.
Puxou por um punhal de ouro, e logo ali a matava.
Foge, foge o cavalheiro, nunca por ali passara.
Ao cabo de sete i-anos cavalheiro ali passou;
e então viu um pastorinho guardando sua ovelhada:
– De quem é aquela capela, de quem é aquela morada?
– Capela de Santa Helena, que um cavalheiro a matara.
– Perdoa-me, Helena, meu amor primeiro…
– Como perdoar-te, ladrão carniceiro?
mataste-me no monte, como o lobo a carneiro…
mas vais aqui ao teu filho, se ele perdoaria.
– Perdoa-me, filho, meu amor primeiro…
– Como hei-de perdoar, lobo carniceiro,
que matou minha mãe no monte, como lobo a cordeiro?
– Não dirás tu, filho, em que pena eu cairia?
– Condenado ao inferno, por causa de uma má língua!
– Mal hajam as más línguas e quem nelas lá se finta!
Por causa de uma má língua, matei a mulher querida!

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A mulher avarenta  [GCAD II]  920  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Era um homem muito rico três vezes enviuvou;
Casou com uma mulher pobre, grande soberba se tornou.
Vem na Quinta-feira Santa, quinta-feira qu’há-de vire;
Está um pobre à sua porta, oh que lindo tem pedire.
Nem l’iam a dar esmola nem o iam despedire;
O pobre entrou p’ra dentro, tornou a repetire.
O homem, por ser dorido, dorido do coração,
Entrou para a cozinha, deu-lhe um bocado de pão.
A mulher, por ser ingrata, das mãos lho foi tirar;
Co’a soberba que levava à caldeira o foi deitare.
– Vem cá tu, ó meu marido vem cá tu, se queres vere.
Uma caldeira sem nada cheia de sangue a fervere.
-Vem cá tu mulher ingrata, ingrata do coração;
perdestes o corpo e alma por um bocado de pão!…
Era meia-noite em ponto quando estava a suspirare:
Os mosquitos eram tantos que a levantavam ao are!…
Os diabos eram centos em cima dela a voare!…
Foram-na a enterrare e não acharam qu’enterrare!…
Com isto, ó meus senhores, esmolas cada vez mais.

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A donzela apaixonada  [GCAD II]  908  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Namorou-se um cavaleiro da filha dum lavradore
despois que a namorou longos meses se ausentou
Donzela, como discreta, ao caminho se deitou
lá no meio do caminho lavadeiras encontrou.
– Oh Deus vos guarde, lavadeiras,Deus vos saiba guardare
dos trabalhinhos do mundo e das areias do mare
Cavaleiro de armas brancas viram por aqui passare?
– Esse homam, ó menina, aqui passou ò jantare.
Chegou a mais um pinheiredo, cavaleiro vira estare
numa banquinha a escrevere numa janela a notar.
– Donzelinha, de tão longe, quem te trouxe a este lugare?
– Os amores do cavaleiro, que são maus de ausentare.
– Quando eu quis, tu não quiseste, agora tens de deixare.
Donzela, como discreta, morta se deixou ficare.
Nem com vinho nem com água a pôde ressuscitare.
– Ressuscitai-a, mãe do céu, que só vós podeis obrare.
Minha mãe, que sois mais velha, um conselho me há-des dare.
– Agarra-a pelos cabelos e deita-a ao muladar.
– Isso não, ó minha mãe, que isso não é ser leale.
Mando-le fazer o enterro com pedrinhas de cristale,
que digam os passageiros que aqui está gente reale.

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Antoninho  [GCAD II] 934  (Recolha e Harm Altino M Cardoso)

Antoninho lá na aula e uma pedrinha atirou,
ao brincar co’s estudantes o pavãozinho matou…
– Bons dias, ó meu papá, bons dias le quero dáre
matei o pavão do mestre, trate-o já de ir pagare.
– Está aqui dezoito libras, ou vinte que elas serão,
para pagar a valia do seu estimado pavão.
– Guarde lá esse dinheiro, para amigos não é nada;
mande o Antoninho à escola, inda tem a mesma entrada.
– Antoninho, vai prá escola, que precisas de aprendere.
– Eu não vou, meu pai, não vou, porque sei que vou morrere!
Antoninho vai prá i-aula, todo o caminho a choráre,
chegou à porta da intrada inda ia a soluçare…
e inda ia a soluçare, da sala para o salão.
– Assenta-te, ó Antoninho, e estuda a tua lição,
estuda a tua lição e sem pontinha de errore,
ó depois de estar estudada, tu falas co’o professore.
– Rapazinhos da escola, que é do meu Antoninho?
– Está no quarto dos livros, morto como um passarinho…
O seu pai, que isto oviu, meteu-lhe pena de horrore
meteu o revolv’ ò bolso: – vou matar o professore!…
Vou matar o professore, como se mata um cão:
matou-me o meu Antoninho, sem ter causa nem rezão!…
Vou manda-lo à justiça, vou mandá-lo à prisão,
que matou o meu António, com uma falsa rezão,
e eu vou-me pôr à janela a ver passar o caixão!…

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GCAD_TUNAS-Ritmos Vários

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TUNAS RURAIS

Instrumentos musicas anteriores aos aerofones mecânicos e electrónicos: harmónicos, concertinas, acordeões…

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EXEMPLOS

(In: GCAD II – TUNAS RURAIS: Marchas – Tangos – Valsas – Maxixes – Polcas – Mazurcsa……)
In: 400 CANÇÕES PRÓPRIAS REUNIDAS, de Altino M Cardoso

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O Douro na Régua – valsa (400 CPR, 459)

Tango de Loureiro [em memória de meu Pai] (GCAD II – 782)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Ribaldeira (GCAD II – 774)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Caridinha (GCAD II – 673)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Quadrilha GCAD II – 770)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Marcha Alegria de Viver (GCAD II – 713)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Valsa do adormecer (GCAD II – 802)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Marcha da Tuna (GCAD II – 725)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Contradança 2 (GCAD II, 682)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Mazurka 1 (GCAD II – 762)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

Tango das Andorinhas [em memória de meu Pai] (GCAD II – 779)  [Recolha e arranjo: Altino M Cardoso]

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GCAD_TUNAS-CHULAS DURIENSES

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CHULAS DURIENSES

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Muitas letras (quadras populares)
são comuns a outros géneros musicais

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Dada a universalidade da métrica rítmica da redondilha (7 sílabas métricas) e o número incomensurável de quadras populares em circulação nos cantares tradicionais do nosso Povo, torna-se quase impossível emparelhar a letra com a música – isto é: dizer a que música pertencem as quadras populares, a não ser que a letra dê o título.
Note-se que, em geral, as quadras demonstram uma grande mestria poética, aperfeiçoada através dos tempos, muitas desde a própria época trovadoresca do galego-português.
As chulas e outros géneros utilizam quadras avulsas, pelo será prático inserir algumas das quadras que mais comuns nessas danças.
Nos volumes I e II do GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO as pautas inserem as letras (quadras) da parte cantada a solo – geralmente muito menor do que a parte do toque, que pode até desenvolver-se livremente ou permitir variantes, ao gosto de tocador.


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EXEMPLOS

Chula de Loureiro (Recolha e Arranjo: Altino M Cardoso) Ver pauta em: GCAD vol I, 142

CHULA DE LOUREIRO (RÉGUA)

Toque  ——     ——      ——

SOLO (quadras)

Nossa Senhora da Serra
tem um Filho sarrador
para sarrar a madeira
para o altar do Senhor.

Domingo, se fores à missa,
bem sabes onde eu me ponho:
dá-me um aceno co’os olhos
que eu co’ isso me componho.

Dizes que me queres bem…
eu por obra o quero ver;
o dizer quero-te bem
quem quer o pode dizer.

Se eu soubesse quem tu eras
e qual é teu coração,
uma fala que te dei
ou ta daria ou não.

Se eu soubesse quem tu eras
ou quem tu vinhas a ser,
mandava vir da botica
remédio para morrer.

O amor de homem casado
quem me dera sequer um
para couços de panela
que inda não tenho nenhum.

O amor de homem casado
quem o quer? quem o cobiça?
É como um cânt’ro quebrado
com a rolha de cortiça.

O amor de homem casado
quem o há-de pertender?
é como o vinho botado
que não se pode beber.

Hei-de escrever uma carta
ao rigor desse teu corpo:
juro que não chegará
quanto papel tem o Porto!

Deste-me um ar de teu riso
quando por ti fui passando:
empiscaste-me os teus olhos,
eu logo me fui chegando.

Ai, amores de ao pé da porta
quem mos dera a todo o risco:
ainda que a boca não fale,
os olhos sempre lhe empisco.

Aos olhos do meu amor
hei-d’lhes atirar um tiro,
já que eles por bem não querem
voltar a falar comigo.

Os olhos requerem olhos,
os corações, corações:
também as boas palavras
requerem boas acções.

Os olhos requerem olhos,
Tudo requer o que é seu:
eu requeiro o meu amor,
é por justiça que é meu!

O amor, quando se encontra,
causa pena e causa gosto,
sobressalta o coração,
faz subir a cor ao rosto.

Hei-de subir ao teu peito
por alta escada de vidro,
com fechaduras de prata
para me fechar contigo…

A CHULA é uma dança típica do Douro, bem batida e movimentada, até um pouco violenta, tal como a natureza agreste, que precisou de ser domada até se destilar em vinho doce e se transformar em Património Mundial.
Não hesito em escrevê-la neste tom, pois a cantadeira de uma chula tem de elevar a voz até ao sol, ou até, mais alto, como a lendária Marquinhas da Maratas, de Loureiro, que atingia o dó superior… como nem muitas divas da ópera!
Sobre a letra posso observar que está conotada com a Romaria à Senhora da Serra do Marão, no primeiro domingo de Setembro.
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Chula da Régua (Recolha: César das Neves | Arranjo: A M C) Ver pauta em: GCAD vol II,1140

CHULA DA RÉGUA

Eu hei-de te amar, amar,
eu hei-de te amar a rir;
mas hei-de te amar de dia,
que à noite quero dormir.
A candeia, por estar baixa,
não deixa de alumiar:
assim o amor, lá de longe,
não deixa de nos lembrar.
Há silvas que dão amoras
há silvas que as não dão:
há amores que são firmes
como há muitos que o não são.
Abre-te, meu peito, e fala!
Coração, salta cá fora:
anda ver o meu amor,
que chegou aqui agora.
As pombinhas quando nascem
põem-se logo aos beijinhos:
assim são os namorados
quando se encontram sozinhos…
Oh, coração, coração,
quem te atirara dois tiros,
com uma pistola de oiro,
carregada de suspiros!
A salsa do cais do Douro
de mimosa cai-lhe a folha:
tenho um amor bem bonito,
se não houver quem mo tolha.
O meu amor foi-se embora…
se ele foi, deiá-lo ir:
mas deixou-me prisioneira,
que não lhe posso fugir…
Vou-me embora do meu amo,
não lhe devo nem um dia:
antes me deve ele a mim
das noites que eu não dormia.
Ando por aqui de noite
às escuras como o rato:
ando de porta em porta
não atino co’o buraco.
Ando por aqui de noite
como o gavião perdido:
acordo e adormeço
contigo no meu sentido.
Limoeiro do Brasil,
bota pra cá um limão:
quero tirar uma nódoa
que tenho no meu coração.
Minha mãe é minha amiga,
quando coze dá-me um bolo:
quando se arrenega comigo
dá-me com a pá do forno!
De que servem as esquinas
numa noite de luar,
se elas não hão-de encobrir
dois amantes a falar?
O sol anda e desanda
mil voltas em derredor:
eu não ando nem desando,
sou leal ao meu amor.
Falais de mim, falais de oitros,
sempre tindes que dizer:
inda que o inferno bem cheio
vós haveis de lá caber!
Onze horas, meio-dia
e o jantar arrefece…
anda agora muito em moda:
quem mais faz menos merece!
Tenho catorze namoros
pra conversar às semanas:
três Marias, três Josefas,
Três Franciscas, cinco Anas.
A salsa do cais do Douro
de mimosa cai-lhe a folha:
tenho um amor bem bonito
se não houver quem mo tolha.
O meu amor foi-se embora…
se ele foi, deixá-lo ir:_
mas deixou-me na prisão,
que não lhe posso fugir…
Onze horas, meio-dia
e o jantar arrefece…
anda agora muito em moda:
quem mais faz menos merece!
Vou-me embora do meu amo,
não lhe devo nem um dia:
antes me deve ele a mim
das noites que eu nem dormia.
Falais de mim, falais de oitros,
sempre tindes que dizer:
inda c’o inferno cheio
vós haveis de lá caber!
____________________________________
Chula do Marão  (Arranjo: A M C) I 145

CHULA DO MARÃO

– Boua noute meus sinhores,
bai começar a questão
desafio a cantadeira
mesmo sem ter pau na mão.
– Deus te perdoie cantadore
tanta léria, pouca obra
sou cantadeira assanhada
eu cá sou de pel’ de cobra.
– Num me metas tanto medo
que me dói aqui dum lado;
canta-me com mais meiguice
se me queres pra namorado.
– Eu namorado já tanho
e no meu peito bem pula
eu quero deitar-te abaixo
mas a cantar esta chula.
– Se calhar num lebo nada
por ‘star a cantar contigo
– Só quero que continues
a ser sempre meu amigo
_________________________
Chula rabela  (Arranjo: A M C)  I, 147

CHULA RABELA

Ó chula rabela, ó chula.
– Ouves, ó lindinha? –
Eu não te digo que não!
São rapazes de calça branca,
– Ouves, ó lindinha? –
e castanheta na mão.
Dizeis que viva Barqueiros.
– Ouves, ó lindinha? –
Por ter a frente caiada,
eu também digo que viva
– Ouves, ó lindinha? –
a bela rapaziada!
Vou dare a despedida.
– Ouves, ó lindinha? –
Vou dá-la e vou-me embora.
São horas de “recolhere”,
– Ouves, ó lindinha? –
o canário à gaiola.
_______________________________

Chula farrapeirinha (GCAD II, 1145) [Recolha e harm AMC]

CHULA FARRAPEIRINHA

Ó minha farrapeirinha,
ó minha farrapeirona,
já trazes a saia rota,
da apanha da azeitona.
O diabo leve os homens,
aqueles que bebem vinho:
não me há-de levar o meu,
esse bebe poucochinho!
Ó minha farrapeirinha,
ninguém mais do que eu te quer:
hei-de pedir-te a teu pai,
para seres minha mulher.
Quem me dera ser retrós,
ou linha de toda a cor,
para andar junto ao teu corpo,
servindo de atacador.
Já te quis, já não te quero,
já te amei, já te não amo,
a minha pouca assistência
vai te dar o desengano.
Algum dia, meu brinquinho,
o meu regalo era ver-te:
agora tanto me vale
ganhar-te como perder-te!
Ó minha bela menina,
quanto tenho te darei:
darei-te a vista dos olhos,
cego por ti andarei!
Ó minha bela menina,
hoje sim, amanhã não:
hoje me tiras a vida,
amanhã o coração!
Muito brilha o branco-branco
ao pé do branco lavado:
muito brilha i’uma menina
ao pé do seu namorado!
Ó menina, diga, diga,
por sua boca confesse
se já teve em sua vida
amor que mais lhe quisesse!
Menina, se quer saber
como agora se namora,
meta o lencinho no bolso
com a pontinha de fora.
Nem tanto estar à janela,
nem tanto olhar para o chão,
nem tanto tirar o lenço
da algibeira para a mão.
Menina, se quer ser minha,
ponha o pé na segurança,
pois há-de andar direitinha
como o ouro na balança!
________________________________
Chula de Tabuadelo (Arranjo: A M C) ii 679

CHULA DE TABUADELO

Letra/solo (?)
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Chula Arrais do barco  (Arranjo: A M C)  I, 104

CHULA ARRAIS DO BARCO

Ó senhor Arrais do barco,
olhe lá a sua barquinha,
olhe lá a sua espadela
que não esbarre na minha!
Ó senhor Arrais do barco,
caiu uma rata à panela:
não me tire cá o caldo
que eu não quero comer dela!
Ó senhor Arrais do barco,
salte fora e venha ver:
venha ver a sua filha
que se vai “arreceber”!
______________________________
Chula de Alva  (Arranjo: A M C)  I, 141

CHULA DE ALVA

– Boua noute meus sinhores,
bai começar a questão
desafio a cantadeira
mesmo sem ter pau na mão.
– Deus te perdoie cantadore
tanta léria, pouca obra
sou cantadeira assanhada
eu cá sou de pel’ de cobra.
– Num me metas tanto medo
que me dói aqui dum lado;
canta-me com mais meiguice
se me queres pra namorado.
– Eu namorado já tanho
e no meu peito ele bem pula
eu quero deitar-te abaixo
mas a cantar esta chula.
– Se calhar num lebo nada
por ‘star a cantar contigo
– Só quero que continues
a ser sempre meu amigo.
_______________________________
Chula de Baião  (Arranjo: A M C)

CHULA DE BAIÃO

Sem solo (letra)?
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Chula de Barqueiros  (Arranjo: A M C)

CHULA DE BARQUEIROS

Sem solo (letra)?
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EXEMPLOS DE QUADRAS POPULARES DAS CHULAS

SOLISTAS:
Ó amores novos, falai-me,
que os velhos já me esqueceram;
faço de conta que foram
folhas de papel que arderam!
Semeei o meu faval,
já tenho muitas favinhas:
já tomei novos amores…
os velhos que torçam linhas!
Eu só amo a três amores,
dois de manhã, um de tarde;
trago-os a dois enganados,
só a um falo verdade.
Já te quis, e bem, na vida,
isso quis, que eu não o nego;
fizeste-me uma traição
agora nem ver-te quero!
Cala-te, meu coração,
Tu nada queiras dizer:
quem se cala vence tudo,
também tu há-des vencer!
Eu amar hei-de te amar,
foi palavra que te dei,
por fim hei-de te deixar,
como tu fazes tambéim.
Hei-de amar a pedra dura
e ao teu coração não:
que a pedra dura não queima
e tu queimas sem razão.
Sois água e não matais sede,
sois pimenta e não queimais:
sois uns e pintais-vos de oitros
quando comigo falais.
Domingo, se fores à missa,
bem sabes onde eu me ponho:
dá-me um aceno co’os olhos
que eu co’ isso me componho.
Dizes que me queres bem…
eu por obra o quero ver;
o dizer quero-te bem
quem quer o pode dizer.
Se eu soubesse quem tu eras
e qual é teu coração,
uma fala que te dei
ou ta daria ou não.
Se eu soubesse quem tu eras
ou quem tu vinhas a ser,
mandava vir da botica
remédio para morrer.
O amor de homem casado
quem me dera sequer um
para couços de panela
que inda não tenho nenhum.
O amor de homem casado
quem o quer? quem o cobiça?
É como um cânt’ro quebrado
com a rolha de cortiça.
O amor de homem casado
quem o há-de pertender?
é como o vinho botado
que não se pode beber.
Hei-de escrever uma carta
ao rigor desse teu corpo:
juro que não chegará
quanto papel tem o Porto!
Deste-me um ar de teu riso
quando por ti fui passando:
empiscaste-me os teus olhos,
eu logo me fui chegando.
Ai, amores de ao pé da porta
quem mos dera a todo o risco:
ainda que a boca não fale,
os olhos sempre lhe empisco.
Aos olhos do meu amor
hei-d’lhes atirar um tiro,
já que eles por bem não querem
voltar a falar comigo.
Os olhos requerem olhos,
os corações, corações:
também as boas palavras
requerem boas acções.
Os olhos requerem olhos,
Tudo requer o que é seu:
eu requeiro o meu amor,
é por justiça que é meu!
O amor, quando se encontra,
causa pena e causa gosto,
sobressalta o coração,
faz subir a cor ao rosto.
Hei-de subir ao teu peito
por alta escada de vidro,
com fechaduras de prata
para me fechar contigo.
O sol, quando quer nascer,
à minha porta vem dar,
vem pedir obediência
dos raios que há-de deitar.
O sol para todos nasce,
só para mim escurece:
desgraçada rapariga
que até o sol aborrece.
Eu fui a que disse ao sol
que era escusado nascer…
à vista desses teus olhos,
que vem o sol cá fazer?
Ó meu cravinho vermelho,
salpicado na botica,
adeus, que me vou embora,
meu coração cá te fica.
Dizes que te vais embora
e já te estás preparando,
ai, se eu fora livre agora,
que te fora acompanhando.
Agora é que vou morrer,
vou passar o meu martírio:
vou morrer sem acabar,
padecer sem ter alívio!
Já lá vai o sol abaixo,
já não nasce onde nascia,
já não dou as minhas falas
a quem as dava algum dia.

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GRANDE CANCIONEIRO do Alto Douro [GCAD] I

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GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO

"A Bíblia Cultural do Alto Douro" - Dr Manuel Silva Marques (Homo Duriense e Fundador do CICDAD-Círculo de Cultura e Desenvolvimento do Alto Douro)

Volume  I

Cantigas da Vinha
Introdução ao Vol I

DE MODO GERAL, todas as cantigas do 1º volume (CANTIGAS DA VINHA) são também cantos do trabalho. Estas do segundo volume estão mais dispersas por várias actividades da quinta.

Uma quinta era composta de vinha, produtora do vinho, e campos, donde era retirado o sustento diário de pessoas e animais e, por vezes, algum movimento de vendas (hortaliça, fruta, porcos, galinhas…), mas que não tinha o significado económico da venda do vinho.

O caseiro da quinta tinha de equilibrar os trabalhos da vinha com os do campo, de modo não só a garantir o pão aos trabalhadores ‘diários’, que hoje diríamos efectivos, mas também a optimizar e rentabilizar os recursos da terra e da mão-de-obra.

A época de mais trabalho e proventos era a Vindima. Depois, era a cava da vinha, que exigia bons braços. A cava do campo também exigia força e, geralmente, o caseiro assistia com um pipo de vinho de manhã e de tarde, como também era hábito na cava da vinha. A cava da vinha era feita com a enxada de dois ganchos, ao passo que a cava do campo era feita com uma boa sachola. Ambas as ferramentas (se calhar, hoje, chamam enxada às duas) tinham de ser bem encabadas.

O calçado de trabalho mais usual eram as botas cardadas, mas o mais prático eram os socos: abertos e fechados. Ambos tinham base de pau; os socos fechados resultavam da reciclagem das botas velhas que já não merecessem novas meias-solas; os abertos tinham cabedal de raiz e deixavam o calcanhar (ou os meiotes) ao léu, ou quase. Os socos das mulheres eram tão práticos e quase tão delicados como chinelas. Os socos eram uma obra-prima em economia e conforto: os pés andavam sempre quentes, mesmo sem meiotes (ou catúrnios); e, se entrava água ou terra, facilmente se sacudia… Conheci pessoas que passaram toda a vida «encabadas nuns socos» – na expressão felicíssima do nosso João de Araújo Correia. Sobretudo os caseiros, mas mesmo gente com posses. Pode estar aqui a mais válida razão prática para a carestia de corridinhos no Alto Douro.

No Alto Douro existia uma grande clivagem social: de um lado, a minoria dos proprietários das quintas e, do outro, a multidão faminta dos que nada tinham, a não ser a força braçal do sobrevivente e a resistência anímica do herói – ou do escravo, que é o mesmo, na prática. Quando as quintas precisavam de trabalhadores, o caseiro rogava: “tantos homens, a tanto por dia, secos”. A palavra passava e no dia aprazado, lá estavam os trabalhadores. Recebiam ao sábado e, feito o trabalho, voltavam ao ‘stand by’ da procura do pão-de-cada-dia para si e para os filharada. Sem direito a estar doente e a esperança de uma reforma apenas apareceu com Marcelo Caetano, em fins dos anos sessenta…O dia de trabalho ia do romper do dia até ao pôr do sol: 6 horas se a luz durava 6 horas, 10horas se a luz durava 10 horas. Geralmente o trabalho rural era ‘a seco’: a quinta não dava comida. Dava, sim, uma sardinha de manhã (ou uma dúzia de azeitonas) para os trabalhadores comerem com a broa que sempre levavam de casa, comprada a crédito (o merceeiro punha no rol) e paga nahora de receber. (Entretanto, a sardinha tornou-se folclore de ricos e hoje é paga a preço de ouro).O salário variava segundo a rígida lei da oferta e da procura: a época do fim da vindima era a que pior pagava e, devido ao mau tempo, não havia trabalho em lado nenhum. As vinhas entravam no Outono e havia que esperar que as folhas caíssem para se fazer a escava, que era uma poça quadrada ao redor de cada videira, para captar as folhas e armazenar a água das chuvas que iam caindo. Só restavam (e nem em todas as quintas) os trabalhos nos campos: cavar e estrumar a terra para plantar os produtos hortícolas, que davam para gasto de casa e, às vezes, para vender nas praças e feiras.

Depois aproximava-se a Primavera. Então, campos e vinha, exigiam cuidados diários: poda, erguida, sulfato, enxofre, espampa, mais sulfato… até se chegar ao pino do Verão. Durante o amadurecimento das uvas, até à vindima, a falta de trabalho era uma constante no Alto Douro. Então, muitos trabalhadores rurais nossos engrossavam a oferta de mão-de-obra, juntamente com os espanhóis da raia do Duero, e iam em grupos para as malhadas e ceifas do Nordeste Trasmontano, donde traziam o mimo dos filhos, o ‘rolão’ do Tua, e muitas cantigas, sobretudo belíssimos rimances, alguns presentes neste livro.

Por isso, quando se pensa nos heróicos saibradores das íngremes encostas, a ferro e pá, o nosso pasmo entranha-se numa cadeia de meditação poderosa e esmagadora sobre a dificuldade em equilibrar o Pão sacrificado do Homem com a ditadura da Natureza duriense. Mas nunca faltava uma cantiga – com a alegria ou a tristeza da hora.

E uma sub-classe social emerge: a dos caseiros. É rogador e administrador; provedor e conselheiro, por vezes; mão amiga numa hora de fome, não raro. O caseiro é muito mais do que o equivalente clássico do engenheiro agrícola destes tempos de escolaridade obrigatória: é o fiel da balança sócio-económica do humanismo possível.

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O GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO é uma obra de recolha monumental, com 1.150 músicas (pautas) e letras de canções tradicionais da Região, englobando 3 grandes volumes, cada um com 640 páginas, perfazendo um total de 1.920 páginas.

As canções foram recolhidas no Alto Douro, donde o autor é natural, em cerca de 50 anos, nomeadamente durante a época das vindimas, que atraíam ‘cardanheiros’ de todas a regões circundantes, com destaque para zona do Montemuro e do Marão: Resende, Cinfães, Marco, Baião, Castro Daire…

Este Vol. I contém um estudo histórico-literário inicial sobre as principais caractarísticas histórico-literárias da lírica medieval (séc. XII) galego-portuguesa – muitas das quais ainda se conservam actualmente, como é o caso dos géneros (diálogo com a mãe, romarias…) ou do paralelismo (ruralidade, iniciativa feminina, alternância vocálica, leixa-pren, número par de estrofes para dividir em dois os dançarinos, refrão…).

Ver neste site:

GCAD_Contextos hist.-literários

 

Ver mais músicas e letras em:

GCAD A  – GCAD B – GCAD C – GCAD D

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EXEMPLOS

Dançar a rabela

Deita a barca ao rio

Chamaste-me trigueirinha

A pomba caíu ao mar

Adelaidinha

 

A madrugada lá vem

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