GCAD_Contextos hist.-literários

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ALTO DOURO

UM PATRIMÓNIO HERÓICO,

também sublimado em

cantigas da Vinha, da Terra e do Amor

** In: Altino Moreira Cardoso – GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO, vol I – p. 9-41.

Miguel Torga pecou, ao omitir as cantigas das raparigas da nossa terra nos motivos que atrasam a entrada de São Leonardo na felicidade eterna.

Na Terra sublimada em Património Mundial, por produzir o vinho mais fino do Mundo, as cantigas também se associam ao sagrado festim do perfume do rosmaninho e da doçura do vinho mosto.

As cantigas do Alto Douro chegaram de Santiago de Compostela nos tempos do galego-português e de D. Afonso Henriques e, depois de séculos monásticos discretos, consolidaram-se e multiplicaram-se com as vindimas, ao ser criada, pelo Marquês de Pombal, a primeira Região Demarcada do Mundo. Para as apreciar devidamente, há que ir mais além e mais fundo: ao próprio galego-português e ao início da nacionalidade, em que Egas Moniz, em Lamego (no coração do Alto Douro), educou o jovem fogoso que foi o primeiro Rei de Portugal.

D Sancho I, ausente nas obras de fortificação da Guarda, é autor e objecto da primeira cantiga de amigo:

Ai, eu, coitada, como vivo

en gran cuidado por meu amigo

que ei alongado! Muito me tarda

o meu amigo na Guarda!

E D. Dinis é um dos maiores poetas trovadorescos, a par de D. Afonso X, seu avô.

Muitas das nossas cantigas conservam traços das antigas cantigas populares ‘de amigo’, que os três Cancioneiros com cantigas dessa época (C. Ajuda, C. Vaticana e C. Biblioteca Nacional), infelizmente, só conseguiram preservar uma ínfima parte, sobretudo no aspecto musical.

O trabalho de recolha da nossa música tradicional tem de tentar ir ao fundo dos Tempos, procurar e preservar as possíveis jóias escondidas em arcas anónimas, salvas milagrosamente da ignorância e da voracidade do tempo.

Um trabalho destes requer apreciável sentido histórico, muita sensibilidade e preparação poético-literária, musical e, ainda, informática.

 

I – ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-LITERÁRIO

Lamego, Braga, Porto, Guimarães e, depois, Vila Real, antigas e nobres terras do início da Nacionalidade, foram importantes pólos de consolidação da nossa Nacionalidade e de Romagem a Santiago de Compostela, a mais importante romagem da Europa, onde confluíam os povos de toda a península e da Provença, no Sul de França, para prestar homenagem ao Apóstolo que foi directamente escolhido e conviveu com Cristo e, depois, veio para o noroeste da Península cumprir o Seu mandato: “Ide por todo o Mundo…”.

Santiago era o Patrono da Cristandade em toda a Península. Aqui tomavam alento espiritual as Cruzadas contra os Mouros, até os expulsarem completamente. O mapa seguinte mostra as datas da libertação do Reino.

Ao mesmo tempo, as peregrinações ou Jacobeos (Tiago=Jacob) transformavam também Santiago de Compostela num centro difusor da Cultura Medieval, pois aí eram expostas ao púbico, as criações dos trovadores, jograis e segréis: as cantigas de amigo, amor e escárnio. Os agentes de todas as Artes, desde os saltimbancos e malabaristas aos músicos, pintores e poetas, também não perdiam a oportunidade de lá se exibirem perante audiências massificadas e, por vezes, privilegiadas pela presença mecenática de reis e grandes senhores.

O ano de 1999 foi Ano Santo Jacobeo e, ainda há meses, a UNESCO recebeu o pedido de declarar esta Cultura milenar como Património Imaterial. Demonstrava-se que as manifestações orais como a língua, os cantares, os ofícios, a música, as danças e o universo festivo e ritual têm uma presença constante nas duas comunidades durante todos estes dez séculos (XI-XXI). A catedral foi iniciada em 1075 e terminada em 1211 e estas datas são sincrónicas com as da fundação da nossa nacionalidade e da nossa literatura galego-portuguesa comum. A cidade de Lamego, tão decisiva na fundação da nacionalidade, foi conquistada definitivamente aos mouros em 1057, com o habitual auxílio das ordens religiosas militares ou militarizadas, todas elas ligadas à mística conquistadora e evangelizadora de Santiago de Compostela.

Logo após a descoberta do túmulo de Santiago, o grito de Fé e Guerra de D. Afonso Henriques e dos nossos primeiros heróis era: “Por Santiago!!”

Vejamos, a seguir, a coincidência cronológica da fundação do Reino de Portugal e do desenvolvimento do ideal de Santiago de Compostela e da cultura galego-portuguesa:

 

QUADRO DE DATAS

comuns a Santiago e à Fundação de Portugal

813    Descoberta do túmulo de Santiago

1057 Lamego conquistada definitivamente aos Mouros

1064 O Reino estende-se até ao Mondego

1071 Restauração da Diocese de Lamego

1075 Início da construção da Catedral de Santiago

1096 Conde D. Henrique inicia governo do Condado Portucalense

1096 Foral do Conde D. Henrique a Constantim de Panóias

1109 Nascimento de D Afonso Henriques

1113 Fundação do Mosteiro de S João de Tarouca (Cister)

1120 Ordem Militarizada dos Templários

1128 Batalha de São Mamede

 1128 EgasMoniz nomeado Tenente (= substituto do Rei, Comandante do castelo) de Lamego

1131  Fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra

1135  Conquista de Leiria

1136 Ordem Militarizada dos Hospitalários

1137 Tratado de Paz de Tui – Infante e Afonso, imperador de Espanha

1139 Batalha de Ourique

1140 Sé Velha de Coimbra – lírica provençal

1142-1144 Primeiras Cortes do Reino de Portugal em Lamego (Almacave)

1143 Tratado de Samora – Reconhecimento oficial do reino de Portugal

1144 Ordem Militarizada de Cister, Tarouca

1147 Conquista de Santarém e Lisboa aos Mouros e também Palmela

1158 Ordem Militarizada de Calatrava

1159 Doação do Castelo da Cera aos Templários (Tomar)

1160 Ordem Militarizada de Santiago e Tomada de Alcácer

1169 Sagração do Mosteiro de Tarouca

1173 O Papa Alexandre III designa D. Afonos Henriques como Rei

1176 Ordem Militarizada de Avis (ramo de Calatrava)

1185 Morte de D. Afonso Henriques

1189 Conquista de Silves e Alvor

1191 Carta de couto a Lamego, por D Sancho I

1209 Universidade de Cambridge

1211 Fim da construção da Catedral de Santiago

1248 Conquista de Sevilha

1249 Conquista do Algarve (Faro)

1253 Fundação da Sorbonne

1289 Foral de D. Dinis a Vila Real

1290 Fundação do Estudo Geral (Lisboa) por D. Dinis

1193 Ordem Militarizada dos Cavaleiros Teutónicos

1323 Ordem Militarizada de Cristo, D. João I (ramo dos Templários)         

1355 Morte de Inês de Castro

Os Mouros expulsos das terras eram substituídos por cristãos, que aí naturalmente dinamizavam a agricultura e preservavam as tradições culturais. A cristianização era, assim, acompanhada das outras formas de manifestação hauridas em Santiago: as produções poético-musicais acompanhavam os ideais religiosos e guerreiros.

Os principais nódulos durienses dessa influência (além da influência institucional e organizacional de Braga e Guimarães) situam-se em Lamego, Tarouca e terras constantes da riquíssima Tenência de Ega Moniz, concedida em 1128 (ver listagem anterior), que deram origem, depois, ao Distrito Administrativo de Lamego, ainda existente em 1835.

A Tenência de Egas Moniz englobava uma vasta zona, limitado, ao Norte pelo rio Douro e a Sul pelo rio Mondego, a Este pelo rio Távora (mas com Sernancelhe) e a Oeste pelo rio Paiva e terras de Arouca, Estarreja e Águeda. Incluía, portanto terras importantes, como:  toda a Região de Lafões e Alto Vouga (Besteiros e Tondela) até ao Dão e Mondego (Mangualde, Penalva) e, voltando a nordeste em direcção ao Douro, Sernancelhe, Tabuaço, subindo até ao Douro pelo rio Torto e Pesqueira.             Ver a figura:

 

LAMEGO foi reconquistada definitivamente aos Mouros por Fernando Magno em 1057, mas a diocese só será restaurada em 1071. Segundo a tradição, D Afonso Henriques viveu com Egas Moniz em Sande e as primeiras cortes do reino de Portugal ter-se-ão reunido em Lamego, na Igreja de Santa Maria de Almacave, entre 1142 e 1144, onde D. Afonso Henriques terá sido coroado Rei de Portugal pelo Arcebispo Primaz de Braga. Esta lenda, tal como muitas outras, foi utilizada para justificar a nacionalidade portuguesa, aquando da Restauração em 1640. Em 1191, D. Sancho concede carta de couto a Lamego, posteriormente a carta de feira anual é concedida por D. Dinis a 10 de Julho de 1292.

O Mosteiro de São João de Tarouca é um dos primeiros – se não mesmo o primeiro – da Ordem de Cister em Portugal (1113). Uma inscrição na fachada da igreja data o início da construção de 1152, e uma outra a sua sagração em 1169. Conserva o túmulo gótico do Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis, autor da Crónica Geral de Espanha de 1344.

É decisivo o papel dos mosteiros na estruturação territorial, técnica, artística e poética de Portugal medieval. Os primeiros esforços de povoamento e cristianização do actual território português são caracterizados, na Reconquista, pela afirmação político-administrativa e pela guerra, por um lado, e pela rentabilização da terra.

Será muito interessante verificar que as cantigas da Região do Alto Douro ainda conservam importantíssimas marcas desses tempos do início da nacionalidade, em que a mobilidade no noroeste peninsular se prestava à sua difusão, dado que, ontem como hoje, as peregrinações têm uma forte componente de lazer associada à intenção religiosa.

Noto que as cantigas populares galego-portuguesas não são as de amor, mas as de amigo, criadas pelas mulheres do povo, que as dançavam e cantavam nas suas rodinhas e serões – como comprova o insistente e repetitivo paralelismo semântico e métrico no número par de estrofes, no refrão, no encadeamento e leixa-pren, na alternância vocálica da rima (veremos adiante)…

Além dos trovadores e jograis, os próprios reis imitavam as cantigas femininas populares, para oferecerem às suas ‘amigas’.

Congelada no tempo a centralidade cultural galaico-duriense de Lamego e do seu nobre Distrito Administrativo, a tradição literária e folclórica do nordeste peninsular irradiada de Santiago voltou a ser impulsionada e vivificada (e, claro, também, às vezes, adulterada) pelas rogas que, no século XVIII, migram das regiões circundantes da Região Demarcada do Douro, a que cedo se juntaram as provenientes da própria Galiza; e a literatura ‘de amigo’ galego-portuguesa regressou como Fénix renascida das próprias cinzas, que reacenderam o mais lídimo folclore do nosso Alto Douro.

Assim, as rogas galegas substituiram os peregrinos dos jacobeos e reavivaram a convivência  galego-portuguesa que tinha sido interrompida durante séculos.

Ainda hoje, nomeadamente na Régua, existem muitos vestígios de nomes galegos. Além da couve-galega, de que se faz o caldo de berças, são denominadas galegas algumas variedades de plantas, ou os seus frutos, cultivadas no Alto Douro, como a oliveira/azeitona-galega, a videira-galega, o pêro-galego, a maçã-galega, o limão-galego, a erva-galega (espécie de azevém, espontânea no norte de Portugal), a silva-galega (da espécie das rosáceas, espontânea no norte de Portugal),etc. O esparregado é um puré feito também de couve-nabiça ou galega.

O vocabulário da língua portuguesa inclui muitos vocábulos que atestam a presença de galegos: galegada, galeguice (ajuntamento de galegos ou algaraviada) (DICIOPÉDIA).

Existem muitos nomes de famílias, de origem galega, como: Abrunhosa, Cibrão, Cassola, Agrelos, Alvim, Briteiros, Burguete, Cochofel, Carrapatoso, Cadilhe, Bugalho, Caetano…

Há tempos foi fundada a Associação Eixo Atlântico. Santiago é cidade da Euro-Região Galiza-Norte de Portugal. E, há poucos meses, foi solicitado o reconhecimento da Cultura milenar galego-portuguesa a Património Imaterial Mundial.

 

II – OS CANCIONEIROS MEDIEVAIS

                                                      Na figura: 

pormenor da página de um Cancioneiro (com a pauta musical)

As produções poético-musicais galego-portuguesas (cantigas de amigo, amor e escárnio) perder-se-iam completamente se não tivessem sido compiladas – só no século XIV e fragmentariamente – em três cancioneiros: o da Ajuda (CA), com 310 poesias, o da Vaticana (CV), com 1205 canções e o da Biblioteca Nacional (CBN), com 1597 canções. (figura).

O género medieval que se prolonga no Alto Douro não é a cantiga de autor, a ‘Cantiga de Amor’, mas a cantiga folclórica anónima, isto é, a ‘Cantiga de Amigo’, descoberta nas peregrinações a Santiago e logo adoptadas e imitadas pelos trovadores de toda a Peninsula nas cortes mecenáticas e nos focos laicos de irradiação cultural desse tempo.

Na Cantiga de Amigo, a iniciativa lírica, confessional, é da donzela. Este fenómeno é original e as jayras mouriscas não são nada que se lhe compare.

[As cantigas d’ amigo…] corpus de poesia amorosa de voz feminina que sobreviveu da Europa medieval e antiga. Oferece um campo ainda pouco explorado para o estudo da voz feminina, ou seja, do discurso, do direito, da sexualidade, da mentalidade, por muito que essa voz possa ser manipulada, os aspectos arcaicos destes poemas, a nível social, linguístico e musical, sugerem que essa voz é genuína nas suas origens.

Assim, lemos cantigas d’ amigo não apenas porque as achamos belas, musicais, engenhosas, eróticas, bem delineadas, mas porque são a fonte principal para um capítulo ainda por escrever na história da cultura europeia.

Rip Cohen – 500 Cantigas d’Amigo, Campo das Letras

 Nessa altura, as mulheres viam-se privadas (temporária ou definitivamente) da presença dos homens válidos, que eram requisitados para o ‘fossado’ ou ‘ferido’ (a guerra da Reconquista contra os Mouros e da Nacionalidade contra os Castelhanos). Este estado de coisas vigorou até à conquista do Algarve e prolongou-se, ainda, até à Aliança Inglesa já no início da segunda dinastia. Como quase nem havia velhos (nem crianças…), a mulher tinha fartos motivos para se tornar activa de forma poético-musical e revelar a sua intimidade e preocupações, até para substituir ou sublimar a privação da maternidade.

As cantigas de amigo galego-portuguesas têm um valor literário e sociológico elevados, o que se pode consubstanciar em algumas grandes características gerais:

A – A Coita de iniciativa feminina. Revela-se nas preocupações da donzela relativas ao seu amigo, integrado nos perigos e ausências das guerras (‘fossado’ ou ‘ferido’) da fundação e consolidação da nossa nacionalidade.

B – A Ruralidade. O sujeito poético (ou iniciativa lírica) é a rapariga do campo no seu ambiente: nas bailadas mostra-se sonhadora e sedutora, nas alvas ou serenas encara o dilema de dormir ou não com ele, nas barcarolas ou marinhas lembra a sua partida ou dialoga com as ondas sobre ele, encontra-se com ele na fonte ou no rio, nas cantigas de romaria atreve-se a procurar o amor…

C – O Animismo. Consiste no desabafo com a Natureza: as flores , o vento, as águas, as ondas…

A coita feminina, a ruralidade e o animismo englobam variados sentimentos de intimismo, confidência (mãe, irmãs, amigas), enlevo, cuidados, ansiedade, paixão, saudade, morte de amor, recusa de mexericos, confiança e insegurança, algum narcisismo…

 D – O Paralelismo é um conjunto de características poéticas formais e baseia-se na insistência contemplativa numa emoção (saudade, coita, etc.):

– o Número par de estrofes – processo adequado à dança em voz e coro, dois coros;

– a Tenção – diálogo, que antecede a desgarrada e a cantiga de desafio;

– o Leixapren – repetição do último verso da estofe anterior como 1º verso da estrofe seguinte;

– a Alternância vocálica da tónica – amigo/amado;

– o Refrão – bordão, apoio e síntese métrica da estrofe, ponto de encontro, charneira e partida para nova estrofe.

Para além do valor poético-literário e musical, as cantigas populares medievais e do Alto Douro legam-nos um manancial de pormenores sócio-culturais, que muitas cantigas ainda conservam, de modo inesperado, mas flagrante.

 

III – RAÍZES MEDIEVAIS
DAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

Neste capítulo será demonstrado que a tradição medieval das ‘cantigas de amigo’ apresenta uma continuidade muito significativa no cancioneiro do Alto Douro.

Essa continuidade manifesta-se através de importantes características, que acima concentrei em quatro fundamentais:

 

A – A Coita de iniciativa feminina

 A coita é, geralmente, derivada do ambiente de guerra: na ausência dos homens, no ‘fossado’ ou ‘ferido’, as mulheres tomavam a iniciativa de trocar confidências e manifestar o seu sofrimento. Isto é: a iniciativa da declaração amorosa é assumida pela mulher e não, como universalmente,  pelo homem.

Estudaremos este assunto através de alguns exemplos – de entre vários outros, dispersos ao longo deste livro:

 NAS CANTIGAS DE AMIGO

  1. a) Ai eu, coitada, como vivo
    en gran cuidado
    por meu amigo
    que ei alongado!
    Muito me tarda
    o meu amigo na Guarda!
Ai eu coitada como vivo
en gran desejo
por meu amigo
que tarda e não vejo!
Muito me tarda

o meu amigo na Guarda!

D Sancho I (CBN)

 

  1. b) Par Deus, coitada vivo,
    pois non ven meu amigo:
    pois non ven, que farei?
    Meus cabelos, con sirgo
    eu non vos liarei.

    Pero Portocarrero (CBN-CV)

Observação:

O sirgo faz parte da arte da tecedeira e pode ser considerado sinónimo de fita, melhor: passamanes (fitas ou galões entretecidos de fios de ouro, prata ou seda, com que se adornam móveis, peças de vestuário, etc.). Por este exemplo de ornato fino para os cabelos se poderá ver que as cantigas de amigo compostas por verdadeiros poetas (trovadores) perdem o carácter humilde da cantiga popular (a cantiga de amigo) espontânea da mulher do povo – comprometendo o seu valor folclórico mas institucionalizando este género literário.

 

  1. c) Como vivo coitada, madre, por meu amigo,
    ca me enviou mandado que se vai no ferido:
    e por ele vivo coitada!
    Como vivo coitada, madre, por meu amado,
    ca me enviou mandado que se vai no fossado:
    e por ele vivo coitada!

    Martin de Ginzo (CV-CBN)

As froles do meu amigo
briosas van no navio!
As flores do meu amado
briosas van eno barco!
Briosas van no navio
para chegar ao ferido
Briosas van eno barco
para chegar ao fossado

Refrão:

Idas son a frores
daqui ben con meus amores!

Paai Gomez Charinho (CV-CBN)

Na ausência do namorado, por vezes em perigo de vida, ela vive ‘coitada’ (coita=sofrimento) e, como em sinal de luto, não se embeleza com ornamentos.

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

Nas nossas cantigas já não existe a milenar separação medieval pela guerra, portanto já não se verifica ambiente social propício à dramática confidência. Mas permanecem muitas que expressam o sofrimento feminino e, muitas vezes, a paixão avivados pela emigração ou outra separação forçada. Transcrevo e sublinho alguns extractos significativos:

Ai que lindo!
Lindos olhos tem o Tónio,
inda agora reparei
se mais cedo arreparaba,
num amaba quem amei.
Anda cá, que eu já te quero
Anda cá, que eu já te quero,
anda cá, que eu já sou tua:
não no digas a ninguém,
meu amor!
nem às pedrinhas da rua!

 

A iniciativa, como nas cantigas de amigo, é sempre da mulher:

Anda cá meu namorado,
Qu’estás nas bandas de além.
Anda cá dá-me um abraço,
Que eu te quero tanto bem.
 
Que eu te quero tanto bem,
Que eu te quero até morrer:
Até debaixo da terra,
Meu amor, podendo ser!…

 

Coita e cuidados:

Q’ando t’eu num conhecia
nada de ti se me daba:
ai ai ai, sem pensamentos dromia
ai ai ai, sem cuidados acordaba.

ou:

Saudades são felores
Que se apanham no jardim;
Ai, ai, ai, a minha espera contigo
Ai, ai, ai, só à vista terá fim!

 

ou, ainda:

O meu coração tem penas
que não pode aliviar:
ó i ó ai,
foi-se embora o meu amor,
nunca mais há-de voltar!…

 

Outro exemplo de paixão é retirado de uma cantiga em que também é visível um encantador animismo que a transmite e revela:

Passarinho, se eu pudesse
num te interraba no chão:
mandaba fazer a coba
dentro do meu coração.

 

B – A Ruralidade

A vida na aldeia deixa inúmeros vestígios, quer nas relações humenas e de vizinhança, quer nas actividades – quase totalmente dedicadas à lavoura da vinha e do campo. Como possibilidade de encontrar rapazes, além da ida à fonte buscar água e ao rio lavar a roupa, havia os bailes locais, as desfolhadas e, sobretudo as romarias, que as raparigas não deixavam de aproveitar para se mostrarem aos rapazes, arranjarem namorados e, às vezes, ‘darem umas facadinhas’ na virtude…

 

Ida à Fonte, ao Campo ou ao Rio:

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

 Digades, filha, mha filha velida,
por que tardastes na fontana fria?
– os amores ey.
(…)
Cervos do monte a augua volviam
Os amores ey.
Mentir, mha filha, mentir por amigo,
nunca vi cervo que volvesse o rio
– os amores ey.

A demora da moça é explicada pela água turva pelos cervos, como acontecia nas fontes (poças…); mas a água era do rio e a desculpa não servia para a mãe vigilante… e é no refrão que o coro (como no teatro grego) dá a explicação: os amores ey (=tenho amores, tenho namorado ou estive a namorar…)

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

 Na conhecidíssima cantiga AS POMBINHAS DA CATRINA existe uma situação parecida, a perda de tempo com o namorado, com a agravante de:

eu parti a cantarinha
a dar água ao meu amor. (…)
Ó minha mãe, não me bata (…)

A rapariga também vai à horta buscar hortaliça para fazer a comida da casa. E pode encontrar, talvez, um novo amor:

Quando vou à horta,
quando vou e venho,
já me não importa
do amor que tenho!

 

Os Bailes (ou bailias):

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

  1. a) Eno sagrado, en Vigo,
bailava corpo velido:
amor ei!
En Vigo, eno sagrado,
bailava corpo delgado:
amor ei!
Bailava corpo delgado
que nunca houvera amado:
amor ei!

Martin Codax (CV-CBN)

 

A menina é elegante, graciosa, jovem e virgem e dança no adro (eno sagrado) de Vigo. Está enamorada e pronta para o amor!

Na cantiga seguinte, são três as moças enamoradas, que se juntam numa dança debaixo das aveleiras:

 

  1. b)
    Bailemos nós já todas três, ai amigas,
    so aquestas aveleneiras frolidas;
    e quen for velida, como nós velidas,
    se amigo amar,
    so aquestas avelaneiras frolidas
    verrá bailar.

A dança é estrategicamente tomada como poderoso apelo à sedução, pelos gestos e pelas formas do corpo, que serão avivadas pela ausência de mantos (ficarão em cós (=cintura da saia), ‘de corpinho bem feito’). As mães que cumpram as promessas ao santo, elas querem ser apreciadas pelos namorados:

  1. c) Pois nossas madres van a San Simon
    de Val de Prados candeas queimar,
    nós, as meninhas, punhemos de andar
    con nossas madres, e elas enton
    queimen candeias por nós e por si
    e nós, meninhas, bailaremos i.
 Nossos amigos todos lá iran
por nos veer e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas em cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós meninhas bailaremos i.

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

As moças são convidadas a virem dançar em grupo no terreirinho (o terreiro do Douro pode ser a eira de outras regiões) para se exibirem e arranjarem namorado:

 

Aqui, moças, aqui moças,
aqui, moças a bailar,
aqui, neste terreirinho,
um amor hei-de arranjar.

 

As Romarias:

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

São as ocasiões predilectas das moças, já que podem esgueirar-se por entre a multidão anónima e irem ao encontro do namorado, até enquanto as mães cumprem deveres e promessas de ordem religiosa. Afirmam morrer se a mãe as guardar (=proibir) de ir:

Ma madre velida, e non me guardedes

d’ir a San Servando, ca se o fazedes,

morrerey d’amores!

E se me vos guardades d’atal perfia

d’ir a San Servando fazer romaria,

morrerey d’amores.

E se me vos guardades, eu bem vo-lo digo,

d’ ir a San servando veer meu amigo

morrerey d’amores.

João Servando (CV, CBN)

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

No Alto Douro realizam-se, ainda hoje, algumas romarias tradicionalmente muito apelativas: os Remédios (Nossa senhora dos Remédios) em Lamego é a mais notável e concorrida; mas há outras, de que destaco o Socorro (Nossa Senhora do Socorro) na Régua (Peso) e, ainda, a Nossa Senhora da Serra, no alto do Marão.

No próprio Brasil existe, há largos anos, uma Irmandade de Nossa Senhora da Serra do Marão.

A estas romarias está muito ligada a dança da Chula, dança duriense por excelência. Pessoalmente, recordo a chula da Serra, as Desgarradas (de toda a noite) dos Remédios e os arraiais da Régua.

As raparigas tinham profundas razões para querer ir às romarias do Alto Douro, sobretudo aos Remédios, de frondosas árvores e escadarias:

 

– Ó minha mãe deixe, deixe,

ó minha mãe, deixe-me ire

ó arrial de Lamego

que eu bou e torno a bire!

 

A rapariga já deu uma desilusão à mãe, mas promete voltar direitinha desta vez.

A mãe (‘escaldada’) previne:

 

– O arrial de Lamego

é a tua perdição!

 

Também temos cantigas em que, receosa pela sua ausência ou doença, vai simplesmente rezar pelo namorado:

 

(…) deixe-me ir àquela festa:

tive o meu amor doente,

devo lá uma promessa.

 

Cantigas de ‘dormir com’:

NAS CANTIGAS DE AMIGO

 

Normalmente, a moça desses tempos austeros da Idade Média suspirava pela madrugada para ver o namorado, que tinha chegado ‘vivo e são’ do ‘fossado’.

Mas já se encontram documentadas situações em que a moça lamenta dolorosamente que a madrugada chegue tão cedo, pois o namorado vai ter de sair da sua cama:

 

De que morredes, filha,

a do corpo velido?

– Madre, moiro d’amores

que me deu meu amigo,

Alva é, vai liero!

A filha, com a cumplicidade da mãe, recebe o namorado para dormir com ela, mas este desaparece logo que branqueia uma ponta da madrugada.

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

O pedido do rapaz para ir dormir com a rapariga baseia-se, sobretudo, na fragilidade emotiva de uma despedida. antes da partida dolorosa ‘para militar’. A moça geralmente resiste às razões do rapaz, como se vê nesta significativa ‘tenção’ de namorados:

– … eu entro pelo escuro

e saio pela madrugada!

– Não entras pelo escuro

nem sais pela madrugada,

eu sou rapariga nova

não quero ser difamada.

 

Noutra cantiga do Alto Douro, porém, não só a aceitação se dá, como a própria mãe (confidente e cúmplice) o consente. No caso de conhecimento de coabitação e desfloramento mesmo consentido (a que se chamava, sempre, enganar a donzela), o rapaz era obrigado a casar ou pagar uma pesada indemnização, a ir para a prisão ou, mesmo, para o degredo.

Perplexo, diz o moço, acusado e ameaçado de cadeia pelo pretendido sogro, por ‘enganar’ a filha:

 

– Eu enganar, enganei-a

o povo não no sabia:

eu ia dormir com ela

porque a mãe dela

mo consentia…

 

Mas, às vezes, as coisas corriam às mil maravilhas:

 

– Lebantei-me manhã cedo,
de manhã. de madrugada,
a apanhar a folha à rosa
que pra mim staba gardada.

 

 

C – O Animismo

NAS CANTIGAS DE AMIGO

Num ambiente rural, mentalmente limitado, a moça, desgostosa e apaixonada mas totalmente isolada, apenas tem como recurso a comunhão com a natureza. Aí a podemos situar partilhando os seus pensamentos junto ao mar, ao rio, à fonte, às flores, às aves do céu…

A cantiga animista mais célebre, em que a namorada, com o namorado longe, na guerra (no ‘fossado’),  se vê compelida a perguntar às flores do pinheiro notícias do namorado, é esta, de D. Dinis:

 

Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo

ai Deus e u é?

(…)

Se sabedes novas do meu amigo (…)

Se sabedes nova do meu amado (…)

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

 

O animismo nas cantigas do Alto Douro recorre também aos elementos da natureza circundante para transmitir os sentimentos íntimos. Bem perto estão as videiras, com quem a moça dialoga familiarmente, assumindo o seu lugar:

Chora a bideirinha

ela chora, chora,

pelo seu amore

que se bai imbora.

(…)

pelo seu amore, que se bai embarcare.

 

E:

Chora a bideira,

deixa-a chorare

chora a bideira

pois quer amare.

 

Chora a bideira

não chora não,

chora a bideira

meu coração.

 

Outra:

Ó bideira, dá-me um gacho,

ó silba, dá-me uma amora,

ai ai ai, amor dá-me o teu retrato,

ai ai ai, quero bê-lo a toda a hora.

 

Outra forma de animização, com transferência afectiva:

 

– Passarinho, se eu pudesse

num te interraba no chão:

mandaba fazer a coba

dentro do meu coração.

 

Por vezes, é o vento encarregado de levar a trazer as imensas saudades:

Este ventinho que corre

vem da terra do meu bem…

se me trazes soidades,

pega-as lá, leva-as também.

 

Se a separação é provocada pela serra alta, pede à serra que se abaixe:

Abaixa-te, ó serra grande

que me tapas em quem penso,

quero ver o meu amor

a acenar-me com o lenço.

 

A madrugada do dia do reencontro está cheia de promessas de amor:

A madrugada lá bem lá bem,

atrás da serra, toda contente,

bem dar abraços, bem dar beijinhos,

fazer carinhos a toda a gente!

 

Deixo para o fim, na exemplificação deste raro e original processo de animização da natureza, dois flagrantíssimos exemplos, que de tanto andarem na boca de toda a gente passam despercebidos:

Ó oliveira da serra

que o vento leva a felor

ó i ó ai

só a mim ninguém me leva

ó i ó ai

para o pé do meu amor.

 

O outro é o PAPAGAIO LOIRO:

Papagaio loiro

de bico dourado,

leva-me esta carta

ao meu namorado.

 

Ele não é frade

nem homem casado:

é rapaz solteiro

lindo como um cravo!

 

 
D – Aspectos Formais comuns
às cantigas galego-portuguesas e do Alto Douro

o paralelismo métrico, fónico e semântico

 

NAS CANTIGAS DE AMIGO

 

Ondas do mar de Vigo,

se vistes meu amigo

e ai Deus, se verrá cedo!

 

Ondas do mar levado,

se vistes meu amado!

E ai Deus, se verrá cedo!

 

Se vistes meu amigo

o por que eu suspiro!

e ai Deus, se verrá cedo!

 

Se vistes meu amado

por que ei gran cuidado!

e ai Deus, se verrá cedo!

MARTIN CODAX   (CV 884. CBN 1227)

 

Esta cantiga de amigo é, quanto à forma e conteúdo, uma paralelística pura – género poético–musical exclusivo do galego-português do noroeste peninsular.

Contém, portanto, todas as seguintes características do paralelismo:

  1. Número par de estrofes,
  2. Adaptação lógica ao canto e à dança – para dois coros, voz e coro, etc.
  3. Refrão: e ai Deus, se verrá cedo!
  4. Paralelismo semântico: repete as mesmas insistências motivadas pela ‘coita’.
  5. Tem encadeamento perfeito:

– o 2º verso da 1ª estrofe é o 1º da 3ª

– o 2º verso da 2ª estrofe é o 1º da 4ª

– e assim sucessivamente, quando há mais pares de estrofes.

  1. Tem alternância vocálica das tónicas [-i– < > –a-] dos versos:

([Vigo<>amigo<>suspiro…]-[levado<>amado<>cuidado…])

 

NAS CANTIGAS DO ALTO DOURO

Haverá ainda marcas deste processo poético formal, denominado paralelismo – mesmo imperfeito ou parcial – nas cantigas do Alto Douro?

Há, sem dúvida, e em boa percentagem de incidência.

Escolhi dois poemas (letras de cantigas) deste cancioneiro:

 

  1. a) Esta é que era a moda

que a Rita cantava

Lá na praia nova, olaré,

ninguém lhe ganhava!

 

Ninguém lhe ganhava,

ninguém lhe ganhou!

Esta é que era a moda, olaré,

que a Rita cantou!

 

Esta é que era a moda

que a Rita cantou

Lá na praia nova, olaré,

ninguém lhe ganhou!

 

A MODA DA RITA tem as seguintes características do paralelismo:

  1. Paralelismo semântico, pois repisa a mesma ideia até ao fim: cantava-ganhava, cantou-ganhou…;
  2. Alternância vocálica [-a– <> –ou] (ganhava < > ganhou, etc.)

Tem, parcialmente:

  1. Encadeamento ou repetição programada de versos da estrofe anterior; tem paralelismo parcial, o leixa-pren, que é a retoma do último verso da estrofe anterior.

Portanto, só não tem:

  1. Número par de estrofes
  2. Refrão.

 

Segundo exemplo:

  1. b) – Ó Delaide, ó Delaidinha,

tua mãe está-te a chamar:

– eu bei sei o que ela quer:

não me deixa namorar.

 

Não me deixa namorar,

ela também namorou:

minha mãe já não se lembra

do tempo que já passou.

 

Do tempo que já passou,

do tempo que já lá vai:

minha mãe já não se lembra

quando namorou meu pai.

 

Quando namorou meu pai

tinha ela a minha idade:

minha mãe já não se lembra

do que fez na mocidade!

 

 

A cantiga DELAIDE, DELAIDINHA (também constante no presente cancioneiro do Alto Douro) ainda se aproxima mais da cantiga de amigo pura, apresentando estas características:

  1. Tem número par de estrofes; e, consequentemente:
  2. Tem adaptação ao canto e dança (2 grupos – solo e grupo);
  3. Tem refrão;
  4. Tem paralelismo semântico completo;
  5. Tem leixa-pren perfeito até ao fim, embora sem o encadeamento perfeito;
  6. Tem alternância vocálica rudimentar, apenas com base no leixa-pren.

 

Das seis características do paralelismo, só falta uma: o encadeamento perfeito!

Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados. Eles estão distribuídos ao longo deste livro, geralmente anotados à margem.

Anoto também casos de dobre (repetição simples de uma palavra ou expressão) e mordobre (repetição de formas da mesma palavra ou expressão), artifícios que já consignados na Arte de Trovar galego-portuguesa.

 

Pelo exposto se vê que existem inegáveis argumentos para considerar muitas das cantigas do cancioneiro do Alto Douro como descendentes e continuadoras das cantigas de amigo do cancioneiro galego-português. Entraram com a fixação da nacionalidade, com base em Lamego, e persistiram durante séculos. Merecem ser não só recolhidas, compiladas e catalogadas, mas ainda estudadas de modo sistemático, pelo seu valor histórico, social e literário.

NOTA:

Aconselho vivamente a leitura do capítulo relativo à Lírica Trovadoresca Galaico-Portuguesa, numa História da Literatura Portuguesa.

 

IV – A CANTIGA TRADICIONAL
COMO VALOR CULTURAL E POÉTICO

 

Tratando-de de uma forma cultural de grande importância diacrónica, é preciso, basicamente, respeitar a cantiga tradicional. Mais ainda: quanto mais rica e antiga for a herança cultural, mais preparação e cuidado de aproximação requer. Um monumento com cinquenta anos facilitará mais o acesso cultural do que um outro com séculos de existência.

Estando o folclore associado a uma época e cultura recuadas no tempo, para o entender é necessário apreender  as principais coordenadas que o caracterizam. No nosso caso, o cancioneiro do Alto Douro, de modo pelo menos latente, herdou formas e conteúdos poético-musicais com dez séculos de existência. Para entender e, depois, apreciar esta riquíssima herança, é necessário aprender a lê-la nos poemas, a ouvi-la na música e a enquadrá-la no devir da História. Não se aprecia (nem deprecia…) o que não se entende.

O actual ‘espectáculo de folclore’ tem um pouco de culpa da depreciação em que muitos o catalogam. Hoje dança-se qualquer modinha em passo e compasso acelerado, como se fosse dança–jazz, com as mesmas inflexões e rituais, e ninguém toma dois minutos de introspecção para explorar algo de literário, musical ou relativo à indumentária, aos instrumentos, ao ambiente que a cantiga possa transmitir…

A leviandade de um procedimento receptivo sem cultura cada vez mais varrerá a nossa música e poesia ancestral da memória colectiva. Tanto quanto preservar o verdadeiramente essencial, é preciso renovar o figurino e apresentar as nossas cantigas de modo adequado a cada uma delas, valorizando a sua mensagem e embelezando-as através de uma arte renovada, conduzida por gente de cultura. Uma cantiga é uma obra vivenciável, ou recriável, através dos tempos, mantidas que sejam as características essenciais a qualquer obra de arte.

Explicar a mensagem de uma cantiga não é tarefa fácil, antes exige bons conhecimentos de história local e muita sensibilidade poética e musical.

No caso do nosso cancioneiro do Alto Douro, associáveis à forma e ao conteúdo das cantigas de amigo medievais, muitas cantigas apresentam outros dados importantes herdados desse tempo de grande profundidade espiritual: os Símbolos.

Numa recolha e apresentação de cantigas tradicionais não pode faltar a observação das sugestões simbólicas, que tornam transcendente a música, poesia e dança e as transfiguram em rituais de mágica tentativa de aproximação e fruição com o inconsciente colectivo ancestral e inacessível a não iniciados culturalmente.

Passa-se com as cantigas o mesmo que com a observação de um painel, uma rosácea, um alto relevo medieval: é preciso um esforço, por vezes grande e não acessível a todos, para interpretar o figurativo alegórico que muitas maravilhas oferecem.

As minhas observações apensas às cantigas explicam alguns símbolos em concreto; mas o leitor poderá aprofundar este aspecto da ciência etnográfica, pois algumas interessantes surpresas existem nas cantigas das levianamente denominadas gentes ‘simples’.

Como as catedrais, as cantigas estão cheias de elementos iconográficos carregados de simbologia.

Se a presença da videira não se estranha, já que estamos no Douro Vinhateiro, já é mais difícil explicar certos mitos subjacentes no inconsciente colectivo. Como explicar a tão abundante presença do loureiro, laranja, oliveira, rosa, cravo, limão, amendoeira, cidreira, lírio…, ou do castanheiro, morangueiro, amora, rouxinol, trança, vento, viagem, violeta, lua, fonte, maçã, meia-noite, navio, pão, pinheiro, pomba, ouro, avental, bode, borboleta, cabelos, cuco, hera, laço…

Por outras palavras: por que motivo não há lugar nas cantigas para outros elementos tão ou mais abundantes no terreno alto-duriense do que os citados? Por exemplo: pereiras, marmeleiros, pessegueiros, etc.?

A simbologia, pouco explícita por definição, deve ser tida em conta na interpretação da mensagem de muitas cantigas. Uma cantiga contém um poema que, não raro, pode separar-se da música e constituir por si próprio uma obra de arte. Alguns poemas são, até, comuns a várias músicas (como, aliás, a mesma música também o pode ser a vários poemas).

Sem o estudo dos símbolos, não se pode ter acesso a muitas mensagens dos poemas, em que estes podem estar presentes de forma quase cifrada, pois os sentimentos humanos, sobretudo no amor, têm muitos mistérios e claro-escuros, por vezes bem freudianos ou, até, kafkianos.

Quem conseguisse descobrir a origem de certas mensagens inscritas como símbolos hieroglíficos nas músicas populares, penetraria no mais fundo da alma humana!

Deixo aqui uma listagem de muito resumidas interpretações de alguns símbolos presentes (em maior ou menor grau) nas nossas cantigas do Alto Douro:

– O Loureiro é talvez o símbolo mais abundante: aparece mesmo junto à janela do quarto das raparigas (e por ele apetece subir…). Deduz-se facilmente que muitas casas tinham um loureiro perto ou, mesmo, encostado às paredes. É que se julgava antigamente que nas trovoadas (e as do Douro são terríveis…) o loureiro protegia das faíscas. Para além disso, o loureiro é a árvore de Apolo: do sucesso, da glória, da imortalidade. Conceitos importantes na vida e no acesso ao amor.

–  A Laranja é outro símbolo, muito abundante nas cantigas. Como os frutos com caroços, é símbolo da fecundidade. Nalgumas culturas davam-se laranjas aos jovens casais. A oferta de laranjas às raparigas significava um pedido de casamento. É curioso como nas nossas cantigas também existe este gesto, que, como tudo o que é simbólico, pode funcionar, ou não, conscientemente. A cor de laranja, entre o amarelo e o vermelho, simboliza o ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido. Será neste sentido que, ainda hoje, os monges e lamas do Tibete usam esta cor nas suas vestes.

– A Flor da laranjeira é outro dos grandes símbolos da Região do Alto Douro. O ramo tradicional das noivas é feito da branquinha flor de laranjeira. Além do cheirinho mimoso, simboliza a pureza e a virgindade. Nenhuma viúva – ou rapariga não virgem – se atreveria a levá-lo, por uma coerência assumida que dignificava e santificava a dádiva do corpo perante o altar.

– A Flor, em geral, é símbolo da aurora, da Primavera, da juventude, da virtude, da delicadeza feminina, etc. Mas é possível uma simbologia mais profunda: a flor é o símbolo do princípio feminino da passividade e da perfeição espiritual. A floração é o regresso ao centro, à unidade, ao estado primordial, a que está ligada a infância e o estado edénico. A floração é, ainda, a consecução de uma alquimia interior, da união da essência e do sopro, da água e do fogo. Por outro lado, também pode simbolizar o ciclo vital e o seu carácter efémero.

– A Rosa é o símbolo da Mulher por excelência: na sua delicadeza de pétala, na sua forma de cálice receptor  em campânula de oferta, no seu perfume de convívio agradável. Uma rosa vermelha é oferecida universalmente como símbolo de uma amor ardente, mas discreto e delicado…

– O Cravo é o símbolo masculino, nas cantigas muitas vezes apontado à rosa.

–A Amendoeira, além de símbolo da fragilidade por as suas flores não resistirem facilmente às últimas geadas, é o antiquíssimo símbolo de Átis, nascido de uma virgem que o concebeu fecundada por uma amêndoa. Daqui se explica a relação entre a amendoeira e a Virgem Maria. No judaísmo é através da base de uma amendoeira que se penetra na cidade misteriosa da Luz, que é uma morada de imortalidade.

O seu fruto é um símbolo fálico e pode fecundar directamente uma virgem, sem qualquer intervenção sexual. Há ainda uma crença, a nível europeu, de que a jovem que adormecer debaixo de uma amendoaira e sonhar com o seu namorado pode acordar grávida.

– O Amor é fonte ontológica de progresso, na medida em que não significa apropriação, mas união. A libido ilumina-se na consciência, onde se pode transformar numa força espiritual de progresso moral e místico. Pelo amor ambos crescem, ao mesmo tempo que se tornam cada vez mais iguais a eles próprios. Quando pervertido, destrói o valor do outro e, do centro unificador procurado, transforma-se em princípio de divisão e de morte. Eros significa o desejo de prazer; psique é a alma, tentada a conhecer este amor. Os pais representam a Razão, que providencia os preparativos necessários. O palácio (ver isto aflorado numa das cantigas deste livro Ó ANA, Ó RICA ANA), condensa as imagens de luxo e luxúria, todas as produções dos sonhos.

– A Maçã apresenta riquíssima simbologia, por vezes aparentemente contraditória. É o pomo da discórdia de Páris; o pomo de ouro das Hespérides, que são frutos da imortalidade; é o fruto proibido a Adão e Eva no Éden; é a maçã do Cântico dos Cânticos que representa (segundo Orígenes) a fecundidade do Verbo Divino. É árvore da Vida, do Bem e do Mal, do Conhecimento unificador que confere Imortalidade, e, também, do Conhecimento separador, que conduz à Queda. No seio da maçã, as sementes formam uma estrela de cinco pontas. Comer a maçã é correr o risco de abusar da inteligência para conhecer o Mal, da sensibilidade para o desejar, da liberdade para o fazer.

– A Noite é o abandono cego ao desconhecido. Representa o inconsciente e a aventura. Para os gregos é a filha do caos e a mãe do céu e da terra. Também gerou o sono e a morte, os sonhos e as angústias… E a ternura… E o engano. A noite percorre o céu, envolta num vém sombrio, acompanhada das suas filhas, as Fúrias (dos crimes) e as Parcas (da morte). É o tempo das conspirações, das gestações, das germinações. Também apresenta um duplo aspecto: o das trevas onde fermenta o futuro e o da preparação do dia seguinte, donde brotará a luz da vida. Álvaro de Campos invoca-a:

Vem, Noite, antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio, (…)

No teu vestido franjado de Infinito.

Nossa Senhora dos sonhos impossíveis que procuramos em vão (…)

E que doem por sabermos que nunca os realizaremos…

– A Lua simboliza a dependência e o princípio feminino, bem como a periodicidade e a renovação. O eterno retorno e a alternância cíclica fazem dela o astro dos ritmos da vida: controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir: águas, chuva, vegetação, fertilidade… É yin relativamente ao Sol, que é yang na nomenclatura oriental; na China, a festa da Lua realiza-se no equinócio do Outono – correspondente à nossa época das vindimas. Comporta ainda muita da simbologia da Noite.

– A Amoreira, para muitos poetas e místicos (são quase o mesmo) é a árvore onde se ergue o Sol nascente e os seus ramos são a marcha ascendente do Sol. Conta Ovídio que as flores eram brancas de início, mas tornaram-se vermelhas na sequência do suicídio de dois amantes, à sombra de uma amoreira, junto a uma fonte.

– O , ou Laço, simboliza as diferentes decisões que se tomam ao longa da vida, que se vai desatando até à morte. O laço das nossas cantigas (do avental, da ‘belusinha’…) está associado a aitudes importantes no amor: assumir um compromisso, perder a virgindade, respeitar a palavra ou a jura dada…

– O Sirgo é como uma fita, mas ornamentada com nós ou com sementes, pérolas… e aparece nas cantigas em que a menina está pensativa, preocupada (terá leves ou graves motivos para isso) com o cumprimento do compromisso por parte do ‘amigo’ ou namorado.

– A Oliveira é muito rica de simbologia: paz, purificação, fecundidade, força, vitória, recompensa… na Idade Média simboliza, também, o ouro e o amor.

Atribui-se à sua madeira o poder de neutralizar venenos. A Cruz de Cristo era feita de oliveira e cedro. Para o Islão é a árvore central.

– A Videira está ligada ao vinho, que é a alegria, como o pão à sobrevivência, à vida. Antigas tradições colocam no paraíso a videira como árvore da vida. Uma boa esposa é, para o seu marido, como uma videira fecunda (Salmos). Jesus proclama que é a verdadeira cepa e só nEle os homens poderão não secar e ser deitados no fogo para arder. O sangue do Messias é o vinho da Nova Aliança. O vinho é a imagem do conhecimento, da verdade (‘in vino veritas’) e da imortalidade. A videira também transporta a sugestão de mulher nua, com inerentes valorizações sexuais e maternais do leite. Leite (natural) e vinho (laborado) confundem-se no prazer juvenil dos místicos. A videira também simboliza a imortalidade e é essa a razão pela qual o francês diz do álcool eau-de-vie, o gaélico whiskey (=chave da vida), o persa maie-i-shebab (=bebida de juventude) e o sumério geshtin (=árvore da vida), etc.

Ligado aos vinhos está, ainda, o poder viril.

– O Rouxinol é símbolo da perfeição do seu canto. A sua magia embala a noite e faz esquecer os problemas da vida. Para John Keats, a perfeição que ele evoca tão intensamente parece tão frágil que provoca desilusões ainda mais dolorosas quando chega o dia.

– A Violeta simboliza o segredo. A cor violeta estimula as glândulas sexuais da mulher, enquanto o vermelho activa as do homem.

Parece fácil entender o simbolismo subjacente na cantiga VIOLETAS AO COMPRIDO

Muitos escritos cristãos da Idade Média foram lavrados em letras douradas sobre pergaminho violeta: o amarelo é a Revelação e o violeta é a Paixão de Cristo encarnado. Passou facilmente a ser símbolo do luto e também o da obediência e submissão. Numa versão da MACHADINHA, o ramo de violetas liga-se a isto. Existe também o costume de colocar num fio ao pescoço uma pedrinha violeta, para proteger a criança das doenças e também torná-las obedientes.

– A Pomba começa por ser o símbolo da Paz na Arca de Noé e já inclui o conceito de pureza, simplicidade, harmonia e esperança. Representa também a sublimação do instinto, nomeadamente do eros. Noutro patamar, a pomba simboliza a alma. No Novo Testamento é a imagem do Espírito  Santo. Na origem destes símbolos estão predicados como a acessibilidade social, a brancura e suavidade das penas, a graciosidade do porte e o arrulhar meigo e doce.

– A Tecelagem simboliza a estrutura e movimento do universo. É um trabalho de criação e parto. Quando o tecido está terminado, a tecedeira corta o fio ‘umbilical’ e pronuncia a fórmula da bênção da parteira ao cortar o cordão umbilicar e receber o bébé. O símbolo de tecer é a aranha, que tira de si própria a teia. Muitos ícones tradicionais têm nas mãos fusos e rocas e presidem aos nascimentos e ao desenrolar dos dias e ao encadeamento dos actos. As fiandeiras abrem e fecham ciclos da sua vida e da dos outros. Este misticismo aplica-se ao amor, dando as fiandeiras provas de grande personalidade e maturidade, assumindo ou rejeitando a relação amorosa por inteiro.

– O Avental simboliza não só as relações artesanais e do trabalho, mas a cobertura da nudez como a parra de Eva. Cobre o invólucro corporal que encerra a perfeição. Colocado na parte inferior do corpo deixa livre a parte superior para pensar, pois não só de pão e trabalho vive o homem.

– A Trança é um símbolo fechado, pessimista, sem espaço de fuga, ao contrário da espiral, que lhe vem associada em antítese. Está ligada à mulher comprometida, com o seu futuro irremediavelmente definido.

– A Cidreira servia para fazer chá, que alivia(va) muitas espécies de maleitas. Cultiva(va)-se perto de casa, com a salsa e a hortelã. Também era usada em mezinhas medievais de magia. Na cantiga CIDREIRA ver que a planta está ligada ao animismo, pois a moça desabafa com ela o queixume de o namorado preferir a liberdade da rua a assumir um compromisso de amor.

– Os Perfumes têm várias simbologias: o da rosa é o dos Namorados, o do jasmim é o dos Reis; o incenso é o de Deus; os utilizados para embalsamar simbolizam a Memória. O do cipreste simboliza as Virtudes. A aromaterapia está a iniciar uma prática baseada nos perfumes e na sua capacidade de tirar o véu a imagens do subconsciente. Já se pensa que a heliotropina suscita imagens de flores e jardins e desperta a sensualidade e a vanilina provoca imagens alimentares…

– A Perdiz é tida como símbolo de uma mulher bonita pela beleza dos olhos. Como a pomba tem a  graça e a beleza, mas com o apelo sensual que a pomba não tem. Comer a sua carne é adquirir poder de sedução. A tradição cristã faz dela símbolo da tentação e da perdição, mas também foi considerada protectora contra os venenos.

– O Cuco é o símbolo do ciúme, de que ele é o aguilhão e, mais ainda, do parasitismo, por pôr os ovos em ninho alheio. Demonstra preguiça e incapacidade de construir, estabelecer e governar a própria vida e gerir o seu futuro.

Segundo uma lenda popular, o primeiro canto do cuco na Primavera pode ser uma promessa de riqueza, se quem o ouvir tiver nesse momento consigo uma moeda.

No Alto Douro, perguntavam as raparigas (e nós imitávamos…), ao ouvir de perto o primeiros cantos do cuco:

Cuco de à beira, cuco de à beira, quantos anos m’ dás solteira?

 

V  – O DESAPARECIMENTO DAS MÚSICAS

Provada a existência de características remanescentes dos poemas das cantigas da lírica de amigo medieval galego-portuguesa, conservadas na Região do Douro (com centro político, militar e social em Lamego) e, depois, com o estabelecimento da Região Demarcada, avivadas pela descida das rogas para as vindimas, resta-nos verificar que as músicas correspondentes desapareceram completamente, e de modo natural, com acontece ainda hoje, por poucos as saberem  escrever.

O desaparecimento das músicas das cantigas foi favorecido por importantes circunstâncias histórico-sociais e musicais:

 

Circunstâncias histórico-sociais:

A estabilidade portuguesa conseguiu-se depois da conquista do Algarve aos Mouros e, depois, com a Aliança Inglesa, que eliminou o perigo Castelhano. Entretanto, D. Dinis pôde consolidar o País e desenvolver a agricultura e D. Fernando criou duas estruturas de génio, para a época: a Lei das Sesmarias (1375), que obrigava os vadios a trabalhar a terra e a Companhia das Naus, mútua de pescadores, que iniciava e protegia a nossa indústria da pesca.

Do ponto de vista familiar e social, a chegada dos mancebos da guerra, o acesso ao trabalho e a estabilidade motivaram grande animação afectiva e concorrência entre homens e mulheres.

Este facto teve repercussões importantes:

  1. a) Desaparece o ambiente de crise, que mantinha as mulheres isoladas entre si mesmas, podendo dedicar-se, e discretamente, apenas ao canto e dança dessas originais e belas cantigas de amigo;
  2. b) Desaparece, claro, a necessidade de exprimirem os seus cuidados, a sua coita pela sorte dos amigos em perigo;
  3. c) Aparece a concorrência entre sexos: os rapazes traziam fome de amor: a oferta e a procura alargam-se em sentido geométrico;
  4. d) Tal concorrência desenvolve outras formas de vestir, de cantar e bailar e… de pensar;
  5. e) O crescente optimismo em relação às capacidades do Homem abre as portas ao Humanismo (clássico) e fecha o alçapão da Teocracia (medieval);
  6. f) As novas concepções positivas, aliadas a técnicas de charme amoroso e sedução, em que o corpo é glorificado – segundo o princípio ‘mens sana in corpore sano’ – originam severas reservas da Igreja quanto às exibições (geralmente em cós);
  7. g) O Clero, sempre muito atento aos costumes, proibiu as danças nos adros das igrejas e apenas as tolerava nas esplanadas dos santuários, dada a evolução mundana que começaram a ter, quer no conteúdo das letras, quer na dinâmica das músicas e das coreografias, quer, ainda, nas oportunidades e atitudes de acesso ao amor.
  8. h) Mais tarde, já no tempo negro dos Inquiridores, a Igreja ibérica passou mesmo a considerar a dança como uma das provas da identidade das bruxas e dos feiticeiros.

 

No entanto, muitas culturas atribuem valor, mesmo transcendente, à dança: nos mistérios de Elêusis da antiga Grécia, eram celebradas danças rituais e iniciáticas; no antigo Egipto, as danças eram também de índole religiosa e baseavam-se nos mitos dos deuses; no próprio Antigo Testamento, existem danças rituais, como, por ex. a de David em veneração da Arca da Aliança.

A dança tem uma vertente estética, mística, erótica, numa manifestação da energia primordial.

Nos primeiros tempos do Cristianismo, as igrejas incluíam danças nos seus rituais, que foram proibidas mais tarde pelo seu carácter sensual e feminino. As danças resistiram até aos nossos dias nos rituais profanos do Carnaval (carne+vale=adeus, carne).

Isto é: um punhado de pormenores de fulcral importância cultural para a manutenção e desenvolvimento das nossas tradições folclóricas enquanto membros e co-herdeiros da Cultura nordestina peninsular, depois da independência.

 

Quanto ao desaparecimento material da música original das cantigas, dever-se-á ter em conta os factores seguintes:

– o primeiro está relacionado com o citado desconhecimento da escrita musical. Nos três Cancioneiros acima citados (CBN, CA, CV) poucas cantigas são acompanhadas pelas respectivas pautas;

– o segundo é que, posto de lado o clero, os eruditos não tinham sensibilidade tradicionalista ou conservadora suficiente para com este tipo popular de música e literatura. Isso ficou patente no desaparecimento precoce de toda a lírica trovadoresca. Mesmo o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende não colecciona quaisquer músicas, muito menos populares: apenas poemas da corte.

– o terceiro é comum à nossa própria época, em que se caíu num analfabetismo funcional tão opaco que até já impede a leitura dos poetas. Mesmo a ancestral sabedoria popular transmitida de geração em geração está a perder receptores; já se lamenta que, quando morre uma velha, é mais uma enciclopédia que desaparece para sempre…

– o quarto é correspondente à falta de interesse do Clero (que detinha a exclusividade do conhecimento da escrita musical) em relação às cantigas profanas, veiculadoras das renovadas alegrias de viver. A Igreja mantinha grandes reservas sobre as actividades lúdicas do povo, que era encorajado a participar activamente nos autos festivos, alguns ainda em acção (Natal, Semana Santa…) mas desencorajado de manifestações profanas.

Desaparecimento das músicas por

Circunstâncias musicais:

– o quinto motivo relaciona-se com a crescente e irredutível inadequação da música medieval à exteriorização de sentimentos de novo optimismo, inerente à recente época de paz e estabilidade. A esperança numa vida mais plenamente realizada ultrapassa naturalmente o carácter estático, o luto e a intimidade impostos pelas circunstâncias sócio-literárias das cantigas de amigo, em que o homem – pai, irmão, vizinho, amigo, namorado – estava em perigo, no ‘fossado’ ou ‘ferido’.

O gregoriano, música expressamente criada para os actos religiosos, era também veículo musical das cantigas galaico-portuguesas. Tomando como ponto de partida a pauta gregoriana de Ondas do mar de Vigo, vou tentar (de forma aleatória e especulativa, note-se) ilustrar isso mesmo:

 

Música medieval – gregoriana:

On-das do mar     de  Vi-go – 7 sílabas

 

 

 

1     2     3    4         5    6   7        sílabas

Estas 7 sílabas espraiam-se por nada menos de 20 notas musicais!

 

Transcrição para pauta actual:

On-das do mar de Vi-go

1      2     3    4     5   6  7             –  7 sílabas métricas;

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sol lá dó si dó ré dó dó si lá   dó  si  dó ré dó si   lá   si   lá      sol

1    2   3   4  5   6   7   8  9 10    11 12 13 14 15 16 17 18  19      20          –  2 0  n o t a s   m u s i c a i s !!…

 

As figuras mostram, mesmo a quem não conhece uma nota musical, como faltava dinamismo à música medieval promiscuamente sagrada e profana… gregoriana.

O gregoriano ainda hoje desenvolve poderosas emoções ao ser cantado e escutado; mas o povo, quando dança, precisa de música medida (sim, também mexida). Como a música medieval não estava medida em compassos, a letra era prolongada em intermináveis melismas e as sete sílabas do verso Ondas do mar de Vigo são musicadas em nada menos do que 20 sílabas – o triplo das necessárias!

 

Mas vamos tentar descobrir uma evolução musical, a partir do seguinte excerto de uma cantiga (de amor), já transcrita para a escrita musical moderna:

 

 

 

 

Em primeiro lugar, as ‘extensões’ (melismas) desta música de amor são tão ‘retorcidas’ como os de uma religiosa, de súplica de perdão a Deus– o Kyrie eleison (em grego), que significa Senhor, tende piedade de nós:

 

 

 

A letra (grego, grafado em caracteres latinos) contém 8 sílabas.

A música emprega 29 unidades de tempo (25 notas/colcheias + 4 delas com 2 tempos/ semínimas).

 

Como é visível, não há diferença entre a música religiosa e a dedicada a Dona Leonor.

A adequação silábica da música de dona Leonor ao verso respectivo, evoluiria, em três fases, conservando a final tónica a (lá):

 

 

 

(1) Par Deus, ai,    do–na   Le-o—nor

(2) Par Deus, ai,        do–na   Le—o—–nor

(3) Par Deus, ai,      do—–na   Le—o——-nor

– O primeiro módulo, sem medida, aparentemente tão nu e simples, corresponde ao original;

– o segundo já apresenta medida – compasso binário – baseada na acentuação das palavras;

– o terceiro junta a melodia à medida, respeitando sempre a acentuação.

 

Apresento também uma hipótese (especulativa) em sentido inverso, isto é, partindo da forma actual para uma forma virtual primitiva.

Escolhi a cantiga Ó NAZARÉ, que poderia imaginar-se assim, numa fase intermédia:

 

 

 

Ó Na–za—-,  Na–za–,    Ó Na–za– meu a–mo-re—-, Tu   cho–ras  e’eu in-da_a-qui ó Na-za-,   que   fa– quan-do_eu me for!

Separei por acentos tónicos o verso – podendo-se marcar na pauta o futuro compasso binário.

OBS – Estes pequenos exemplos apenas pretendem mostrar (…muito grosso modo…) que a música gregoriana das cantigas medievais se apresentava com pouco respeito pela acentuação tónica das palavras e sílabas, o que eliminava à partida a possibilidade de ritmo externo e interno. A própria leitura era, assim, relativa. É que não havia sequer tonalidade, pois o latim e o grego baseavam a medida na quantidade vocálica (longas e breves) e não na sílaba tónica. O verso Greco-Latino é formado por pés em que se alternam sílabas longas e breves. Isto dava lugar a interpretações de grande variedade, de acordo com a subjectividade de cada intérprete. Nas interpretações actuais do gregoriano (se esta música pressupõe subjectividade, pressupõe liberdade e expressividade infinita), torna-se indispensável a pré-definição melo-rítmica de um maestro sensível e sabedor, para que possa surgir aquela magia indefinível que Bach, nas suas fugas, dramaticamente procurava.

Na evolução que levou à música moderna, o verso é dividido em sílabas e estas hierarquizadas relativamente à tónica, formando uma nova métrica poética, a que a música se subordina:

O verso Por Deus, ai, dona Leonor será preparado para ‘levar música’ deste modo:

 

 

 

 

 

Por Deus ai do-|-na Le-o-nor – isto é, terá 8 notas, com acento principal na tónica final (-nor) e acentos secundários na 4ª (do-). Logo: 4ª e 8ª sílabas. Há versos (mais longos do que este) que comportam três acentos internos. Aqui, o ritmo adequado é o binário.

As sílabas citadas corresponderão à nota mais forte (a 1ª) do compasso.

O verso também pode dividir-se assim: Por Deus ai do-na Leo-nor! Considerei ditongo a sequência vocálica áspera -eo- (embora o ditongo seja formado com áspera+branda ou vice-versa). Neste caso, ficamos com um verso de 7 sílabas – redondilha maior, muito usada na poesia popular.

O ritmo manter-se-á, mas o acento secundário (que geralmente divide o verso ao meio) passa a ser ai – que não deixa de ser, também, um elemento importante no contexto de dor que o poeta exprime.

 

 

 

 

por      Deus           ai,            do——–na       Leo———–nor!

A comunicação, o diálogo e a dança, entre pares, rapazes e raparigas, gente de ‘sangue na guelra’, nunca podia ser feita assim… a ‘gaguejar’!

A própria língua, tal como na música, sofreu (e desde a mesma altura) uma enorme evolução,  no sentido de eliminar arestas e tempo, para facilitar a comunicação, pela soberana lei do menor esforço. Veja-se este exemplo:

Vestra mercede(m) (Latim) > Vostra mercede > vossa mercê > vossemecê            > vosmecê > vomecê > você > v’cê >

Quem teve um avô disciplinador, ou até pai, sabe como não se podia tratá-lo por você! Mas a simplificação do vocábulo era o sinal do desgaste do tempo… e da vida.

Por isso, a evolução musical tinha de levar, como levou, de facto, a um sistema silábico, em que a nota corresponde basicamente a uma sílaba, adequada ao ritmo natural da dança: binário (dinâmico) ou ternário (mais discreto e estático).

Estava dada a sentença de morte (ou, pelo menos esquecimento) às músicas das cantigas literárias profanas. O Cancioneiro da Biblioteca Públia Hortênsia, no séculoXVI, já apresenta a divisão das frases através dos actuais compassos.

 

VI – TENTATIVAS DE RECUPERAÇÃO
DA ‘ARCA PERDIDA’

 

O fim da Idade Média, se, por um lado, conduziu às ‘luzes’ da cultura Clássica, com a descoberta de um Mundo Novo até então desconhecido, por outro trouxe o nivelamento geral pela cultura greco-latina e o imperdoável desprezo pelas culturas autóctones populares subjacentes à formação das várias nacionalidades, entre as quais a galego-portuguesa.

O Classicismo vigorou entre nós durante três séculos.

Em trezentos anos perderam-se da memória escrita autênticos tesouros da literatura e da música popular. Ficaram apenas na memória oral colectiva, subjacente ao etnos dos povos.

As jóias poético-musicais do Povo só começaram a ser procuradas, valorizadas e coligidas a partir de meados do século XVIII, quando as orientações estéticas pré-românticas e românticas julgaram ver na poesia do povo um sinal da mística ancestral e do inconsciente colectivo, selado à identidade das Nações. Assim, autores como Herder e os irmãos Grimm, na Alemanha, e Percy, no Reino Unido, realizaram os primeiros trabalhos de pesquisa e registo.

Em Portugal, o primeiro romanceiro remonta à primeira geração romântica, devendo-se a sua organização pioneira a Almeida Garrett (1843), que o compilou com rimances ouvidos às criadas, na sua infância portuense.

Mais tarde, Teófilo Braga e Carolina Michaëlis de Vasconcelos ampliaram o trabalho, comparando versões e tentando abrir caminhos na linha da classificação e da interdependência dos textos. São respigados da tradição portuguesa os romances anónimos do ciclo carolíngio e da Távola Redonda, vários romances mouriscos e contos de cativos, algumas lendas piedosas, xácaras e coplas de burlas.

O romanceiro português e o espanhol constituem uma unidade que não é possível separar, visto que há pelo menos seis séculos que ambos os países vêm colaborando na reelaboração dos romances populares.

Mais perto dos nossos dias, surgem grandes compiladores e estudiosos da nossa Etnografia e Folclore, com destaque para Adolfo Coelho (1847-1919), José Leite de Vasconcelos (1858-1941), António Rocha Peixoto (1868-1909) ou Jorge Dias (1907-1973).

As obras de recolha de todos estes pioneiros são imprescindíveis para o trabalho de compilação e estudo, mais dificil a cada ano que passa.

A recolha de gravações apenas pôde começar a ser feita já no século XX, com César das Neves, Pedro Fernandes Tomás, António Joyce, José Diogo Correia, Kurt Schindler, Gonçalo Sampaio, António Marvão, António Mourinho, Armando Leça…

Os últimos grandes compiladores e estudiosos são da segunda metade do século XX: Rodney Gallop, Vergílio Pereira, Fernando Lopes-Graça, João Ranita Nazaré – que implementou e incluiu nos currículos académicos a Etnomusicologia.

Espero que os nossos conservatórios consigam ensinar aos Músicos do Futuro o supremo instinto da alma duma cantiga popular – que reside no fundo do coração e pulsa eternamente na sua transcendência, na sua intimidade, na sua simplicidade…

… e é tão discreta como a divina ‘alma’ de um violino.

 

 

Sintra, 4 de Março de 2006 [editado em 7-7-2020]

Altino Moreira Cardoso

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