GCAD_MÚSICAS-Profissões Rurais

Descrição

Visits: 28

GCAD_MÚSICAS-Profissões Rurais

__________________________________________________________________________________________

2. Não há Vinhas sem Cantigas (Ver: GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO, vOL III – pg 1.291)
Em proporção com a extensa azáfama nos campos e vinhedos, é grande e cíclico o movimento de trabalhos e rezas – cavas, sementeiras, mondas, colheitas, festas, missas, novenas, via-sacras, acções de graças, procissões… – tão propícios ao canto e, também, ao convívio gerador de calor humano, com músicas, danças e vinho.
Os cânticos das Horas (Matinas, Prima, Laudes, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e Completas) ecoaram nos campos, pelas várzeas e vessadas de todo o Vale do Varosa, a área do domínio familiar de Egas Moniz, quase a todas as três horas
do dia e da noite.

E na época das vindimas todas as músicas e danças dos arredores serranos convergiam no Douro, como andorinhas de Outono.

(…)

Como um eco secular das músicas religiosas e canónicas, nos campos havia, ainda, as cantigas populares trazidas dos campos galegos e do adro de Santiago – ver No adro
de Santiago (I,328) – para os saibramentos, as cavas ou as vindimas; também das vinhas francesas permaneceram algumas melodias nas grandes propriedades monásticas de
Mosteirô, Barrô, Paçô…

[ver nota de Eu fui ao jardim celeste  GCAD Vol I, 205)].
Era importante, nessa altura como um pouco ainda hoje, a importação de mão-de-obra, sobretudo para os saibramentos e vindimas; e se os franceses não se fixaram de
modo muito marcante, os Galegos do nordeste peninsular, por afinidade de sangue, partilharam connosco, em galego-português, no Douro e em Santiago, o seu belíssimo e
único folclore tradicional das cantigas populares de amigo, que a nossa Literatura estuda e de que o povo duriense conservou importantes traços em muitas das cantigas, que nos foi dado recolher e guardar nesta obra, para a posteridade, como herança e Património Imaterial nosso.

____________________________________

O GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO recolhe canções que, embora associando maioritariamente um tema de amor, se inspiram em praticamente todos os níveis das diversas nuances familiares, sociológicas e profissionais do mundo rural.

Nas canções tradicionais encontramos a continuidade histórico-cutural desde o galego-português (cantigas de amigo, amor e maldizer), o trabalho e as estações do ano, os provérbios, a vida doméstica e social, a religião (a oficial católica e a popular), os rimances (alguns ligados a Carlos Magno – séc IX !), os lazeres dos bailes e das festas e romarias, os serões… e, até, os maldizeres…

A paisagem rural – purificada pelas águas do ribeiro, do rio, da chuva e banhada pelo sol, o vento, a geada, a neve, o mar… – oferece uma a convivência saudável e simpática, dada a grande variedade de fauna e flora (pássaros, animais domésticos, de companhia, vigilância, trabalho e transporte, flores, árvores, videiras…) e as pessoas distribuem-se pelas mais diversas actividades e profissões, quer masculinas (carpinteiro, barbeiro, taberneiro, sapateiro, lavrador, pescador…), quer femininas (rendeira, tecedeira, costureira, doméstica, segadeira, lavradora, cantadeira, cozinheira, vareira, padeira…). [Ver: GCAD – FOTOS]

Também é digna de nota a proximidade e interacção de classes, desde o criado e o senhor até ao clero e à nobreza tradicional.

OBS – A ruralidade está presente na generalidade das cantigas tradicionais ou folclóricas. Escolhemos apenas uma amostragem das que  (sobretudo no Vol II do GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO) citam explicitamente elementos da natureza ou dos trabalhos rurais.

 

 

EXEMPLOS:

Caninha verde do Marão  (GCAD Vol II – pg 1135)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

CANINHA VERDE DO MARÃO

Ó minha caninha verde ó Senhora do Marão,
linda cara, lindos olhos, eu dou-te o meu coração! (bis)
ó i ó ai,… meu coração, ó minha caninha verde, ó Senhora do Marão! (bis)
Ó minha caninha verde, verde cana de encanar,
aqui estou à tua beira, se estás bem deixa-te estar;
ó i ó ai,… deixa-te estar, ó minha caninha verde, verde cana de encanar!
A cana verde no mar anda à roda do vapor,
inda está para nascer quem vai ser o meu amor,
ó i ó ai,… o meu amor, a cana verde no mar anda à roda do vapor.
Ó minha caninha verde, ó meu rico São João,
quem não quer que o mundo fale, não lhe dê ocasião!
ó i ó ai,… ocasião, ó minha caninha verde, ó meu rico São joão!

__________

NOTA – É bem visível o carácter trovadoresco e paralelístico dos versos: refrão, repetições fónicas, morfológicas e semânticas, rimas alternadas….

_____________________________

Ai que lindo passarinho  (GCAD Vol II – pg 1126)  [Recolha e Harm Altino M Cardoso]

AI QUE LINDO PASSARINHO!

Ai, que lindo passarinho
canta na tua janela! (bis)
alegrai-vos, camponesas,
que já vem a Primavera! (bis)
Já lá vem a Primavera
toda cheia de felores!
Alegrai-vos, raparigas,
que lá vêm vossos amores!
Que passarinho é aquele
que no ar faz ameaço?
Com o bico, pede um beijo,
com as asas, um abraço…
Ó arvoredo fichado,
onde cantam passarinhos!
A quem destes os abraços
dá-lhe também os beijinhos!…
Já os passarinhos cantam,
cantam à minha janela…
Alegrai-vos, raparigas,
que lá vem a Primavera!
____
NOTAS:
1.Esta melodia encontra-se também transcrita na secção RIMANCES DE CEGO do Vol II do GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO. Mas é cantada em ritmo ternário, e não binário como aqui. É um caso curioso e creio que se trata de uma adaptação do cego, acompanhada à guitarra: a letra do seu trágico rimance é estática e meditativa, ao gosto geral do ternário, sem o dinamismo desta dança de primavera, logicamente em dinâmico binário.
2.A primavera conduzia às Festas Juninas com centralidade no mês de Junho, em que se celebrava o renascimento da Natureza e da Vida.
Vale bem a pena ver em pormenor as notas apendiculadas nas pautas do Vol I e II e o texto desenvolvido no Vol III do GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO, do mesmo autor deste sita.

_______________________________________________

Abaixa-te, ó laranjeira  (GCAD Vol II – pg 1124)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

ABAIXA-TE, Ó LARANJEIRA
Abaixa-te, ó laranjeira,
que eu não quero a tua rama
só te quero uma felor
para dar a minha dama.
Para dar à minha dama,
para dar ao meu amor
…abaixa-te, ó laranjeira,
só te quero uma felor!
___
NOTA – A flor da laranjeira é um dos principais símbolos da virgindade antes do casamento.
Ver mais símbolos das canções tradicionais populares no GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO – Vol I (Introdução) e Vol III SIMBOLOGIAS.
Formalmente o poema apresenta algumas das características medievais da época galego-portuguesa: paralelismo semântico e fónico, leixa-pren, dobre…

_________________________________

As Segadeiras  (GCAD Vol II – pg 1131)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

AS SEGADEIRAS

As segadeiras, lá vão, lá vão,
todas contentes com seu patrão,
o seu patrão de trás da serra
e as segadeiras da nossa terra.

_______________

NOTA – Assim como havia um rogador para angariar pessoal para as vindimas, também as segadas (na Terra Quente do Nordeste Trasmontano) precisavam de abundante mão-de-obra no pino do Verão, por coincidência quando as vinhas estavam tratadas (com sulfato e enxofre) e o trabalho escasseava no Douro até à vindima. 

___________________________

Bem cantava a lavadeira   (GCAD Vol II – pg 1132)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

BEM CANTAVA A LAVADEIRA

Bem cantava a lavadeira ao som da sua barrela;
Ela lavava no Douro, estendia lá na serra.
O sabão que le deitava era cravo e canela;
O sabão que le deitava era da flor de macela.
Ela lavava no Douro, a roupa estendia-a na serra
Ela lavava no rio estendia ao par da serra,
No gorgominho da silva em folhinha de marvela.
Bem cantava a lavadeira ao som da sua barrela;
A roupa que ela lavava era do rei de Castela.
O cesto onde coava era de verga amarela;
A caldeira era d’ouro, a i-asa de prata era.
Os panos que ela lavava eram do rei de Castela
A caldeira era d’ouro e a asa de prata era,
E o cesto donde coava era verguinha amarela.

_______

OBS – A estrutura formal, rítmica e fónica, é própria de rimance (monórrimo – vogal tónica – e – aberto) – mas com acentuadas influências do paralelismo  insistente trovadoresco. Este fragmento de texto pode ser muito antigo, mas não tanto a música, em meu entender. Para além da barrela, repare-se na técnica secular de usar um cesto para coar (torcer e escorrer) a roupa, diminuindo-lhe o peso antes de a transportar para a pôr a corar na serra, ao sol, acelerando a secagem, para antecipar novo uso, dado não haver muita roupa, nem facilidade de a lavar (as roupas da cama, por exemplo, só eram lavadas uma vez por ano (e a generalidade dos banhos gerais…), geralmente no Verão de Junho (as Festas Juninas).

__________________________

Carpinteiro não   (GCAD Vol II – pg 1137)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

CARPINTEIRO NÃO
– Ó Joaquininha (ó Joaquininha) que moras no oiteiro
Andas de namoro (andas de namoro) com o carpinteiro…
– Carpinteiro, não, (carpinteiro, não) que me tranca a porta;
– É um soldadinho (é um soldadinho) que anda na tropa…
– Soldadinho, não, (soldadinho, não) que anda a marchare;
– É um barbeirinho que sabe berbeare…
– Barbeirinho, não, que amola as navalhas;
– É um alfaiate, que nos talha as saias…
– Alfaiate, não, que é meio aldrabão;
– É um padeirinho que nos amassa o pão…
– Padeirinho, não, que amassa o farelo;
– É um ferreirinho que bate no martelo…
– Ferreirinho, não, que ele anda mui negro;
– É um pedreirinho, que racha o penedo…
– Pedreirinho, não, que pica na pedra;
– É um lavradore, que nos lavra a terra…
– Lavradore, não, que racha a nabiça;
– Há-de ser um padre, que nos diga a missa…
– Oh! homens, oh, homens, não devia havere!
São todos iguais, não há que escolhere:
Deitai-os no fogo, deixai-os ardere!…
____
NOTA – Esta curiosa lengalenga mexeriqueira dialogada entre vizinhas, é também uma ilustração do ditado: “Quem desdenha quer comprar…”

__________________________

Costureirinha Bonita    (GCAD Vol II – pg 1149)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

COSTUREIRINHA BONITA

– Questureirinha bonita, tu que estás a questurar?(bis)
– Stou a bordar um lencinho para o nosso ginerale.(bis)
– Questureirinha bonita, tens agulha, tens didale,
só te falta a tisoirinha pra talhares o aventale…
Pra talhares o aventale pra talhares a belusinha,
tens agulha, tens didale, ó minha questureirinha.
Pra talhares o aventale, pra cortar a croa à cana…
tens um amor prós domingos outro pra toda a semana.
Questureirinha bonita, a tua agulha picou-me!…
Foi tão grande a picadela: stava a dromir, acordou-me!…
VARIANTE:
– Ó minha questureirinha, tu que estás a questurare?
– Um lencinho de três pontas pró meu amor se alimpare.
– Ó minha questureirinha, que é da cruz do teu cordãoi?
– Perdi-a no arraiale na noite de São João.
– Ó minha questureirinha, quem te há-de levar prá cova?
– Quatro rapazes solteiros que eu sou rapariga nova!
– Ó minha questureirinha, um beijinho te hei-de dare…
um beijinho não é nada: três ou quatro hás-de levare!…

________

NOTA: A costureira, sempre bem vestida e sob tecto, sem ter de se molhar, apanhar frio ou sujar as mãos, beneficiava de uma situação de  charme que atraía os homens e, também, as ironias das mulheres (concorrentes). 

Formalmente, são de registar na letra as normais e antigas ligações à lírica galaico-portuguesa – como em parte muito significativa das cantigas recolhidas no Alto Douro, pelo mesmo autor.

__________________________

Ó elo da videirinha  (GCAD Vol II – pg 1175)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

Ó ELO DA VIDEIRINHA

Ó elo da videirinha,
põe-te a pé, dá-me um abraço:(bis)
eu nunca fiz a ninguém
carinhos como a ti faço.(bis)
Carinhos como a ti faço,
carinhos que a ti te fiz:
não digas que não me queres,
pois fui eu que não te quis.

_________

NOTA: Algumas características medievais formais das cantigas galego-portuguesas (resumo): leixa-pren, dobre, alternância vocálica, etc. Mas, na mensagem poética, o sentimento mais relevante é o animismo e a intimidade do amor à vinha. Cf o poema de Torga: “Meu pai a erguer uma videira como uma mãe que faz a trança à filha”

__________________________

Sapateiro que bate a sola   (GCAD Vol II – pg 1201)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

SAPATEIRO QUE BATE A SOLA

Sapateiro que bate a sola,
ai, pum! ai, pum! ai, pum!
Sapateiro que bate a sola,
tens cigarros, dá cá um!…

_______

NOTA – O sapateiro (como a costureira) tinha uma vida sem sujeição aos esforços e elementos da natureza: atraía também umas ironias… quer por não ter mais força além de bater a sola, quer por passar o dia sentado a fumar…  e, claro, levava caro aos fregueses, que nem “ganhavam p’ra tabaco” .

___________________________

Vem uma chuva que molha  (GCAD Vol II – pg 1216)  [Rec e Harm Altino M Cardoso]

VEM UMA CHUVA QUE MOLHA

Vem uma chuva que molha, não sei de donde ela vem: (bis)
vem lá de baixo, do Porto, de baixo dum almazém. (bis)
Stá o céu ineboado e mais não há-de chover!
Stá o meu amor doente e mais não há-de morrer!
‘Stá o céu ineboado, ‘stá pra chover e não chove!
‘Stá o meu amor doente, ‘stá pra morrer… mas não morre!…

______

NOTA – É notável e profunda a interacção paralelística, animista, metafórica e, até, simbólica, entre a natureza (a chuva que afinal não virá) e o perigo de morrer do namorado (que afinal não morrerá). É uma esperança, quase certeza, retirada da experiência na previsão ancestral do tempo nos campos e vinhas.

______________________________________________________________________________