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VIDA RURAL TRADICIONAL

NO ALTO DOURO

Ver: GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO - Vol III - Pg 1.819 > 1.828

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Ainda hoje recordo este violino na noite (…)

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Tradição – trabalhos e pessoas

Têm-se perdido várias ocupações e trabalhos, sobretudo manuais, devido ao progressivo aparecimento de máquinas. E se a vinha tem sempre de ser cavada, já não existe a velha enxada de dois bicos, a enxada de ganchos, tão exclusiva do cavador do Douro, com que era feita a escava, a cava, a redra…

Com a falta de mão-de-obra aparecem os machos a lavrar entre os bardos; e, apesar do solo íngreme e pedregoso, o desenvolvimento das máquinas vem completar a imagem de desumanização que o Douro tem sofrido nos últimos sessenta anos.

Daquele tempo quase só resta de manual a poda e a enxertia, esta com canudos de plástico a substituir o farrapo de serrapilheira que segurava a terrinha à volta do enxerto bébé: hoje já se faz a apanha da azeitona com máquinas e até já há máquinas de vindimar – mas os pulverizadores a motor foram os pioneiros, ao substituirem os manuais.

O plástico veio arruinar a profissão do cesteiro – lembro-me bem do Fima, da Gervide – que, como o enxertador, comia à mesa do caseiro. O cesteiro era um dos trabalhadores sazonais do Douro, bem como o tanoeiro, o enxertador, o capador, o sairreiro, o recoveiro, o compõe-louça e guardassóis,  o limpa-chaminés, o trapeiro…

O podador de árvores, sobretudo oliveiras, também era um ‘artista’ com certo estatuto superior ao simples cavador jornaleiro.

Antes das cooperativas, o produtor guardava nos tonéis o seu vinho, que fazia no seu próprio lagar: quando o lagar ficava cheio, as uvas eram pisadas na pousa (agora chamam-lhe lagarada) e, quando o mosto levantava manta, deitava-se a manta abaixo com macacos de pau.

As bombas eram ainda manuais e as mangueiras de borracha revestida de lona, como (salvo as devidas diferenças) ainda hoje existem nos bombeiros.

Nos lagares e armazéns havia pipetas e pesas, que indicavam o ponto de encuba, isto é, o grau alcoólico adequado para o mosto deixar de continuar exposto ao oxigénio do ar e ser encubado nos tonéis, que só com o cooperativismo deixaram se der exclusivamente de madeira para na sua construção empregarem o cimento e, depois, ainda, o inox – que hoje dá nas vistas entre as vinhas e quebra a tradição.

Vender o vinho era então a preocupação fundamental dos lavradores: disso dependia uma economia saudável de um ano inteiro, nem sempre garantida, perante despesas sempre certas, com pessoal, géneros, ferramentas e produtos da vinha (sulfato, enxofre…).

Do vinho dependia quase toda a gente, pois, devido à ‘prisão’ familiar, a construção civil e a emigração apenas absorviam um pequena parte dos homens válidos.

Os que ficavam, perante a dificuldade em garantir o pão dos filhos no Verão, iam como cardanheiros para a Terra Quente.

Mas o Douro não era apenas a aldeia, perdida entre uma dobra da ciclópica paisagem, sem estradas nem caminhos, sem água nem esgotos, quase sem electricidade, sem assistência médica…Também havia a Régua, Lamego, a Bila (Vila Real) e a Mesão Frio dos cobertores; para uma necessidade menos trivial, o recoveiro ia à grande Cidade: o velho e invicto Porto.

O isolamento, provocado pelo condicionalismo geográfico da conquista do pão de cada dia, era de vez em quando quebrado pelas promessas de foguetes, gigantones, tunas, bandas de música, procissões, missas cantadas, arraiais… mais música, mais cantigas, mais danças, mais uns copitos, mais umas compritas, mais uns namoricos… e a alegria das tradições ancestrais daquele Povo heróico e puro de antigamente não tem qualquer correspondência nem continuidade com a pimbalhada das músicas e danças enlatadas, que são a toda a hora impingidas às novas gerações, que, desenraizadas e sem cultura, pouco criam mas tudo consomem sem critério.

Para além das festividades geralmente estabelecidas pelo calendário religioso (Natal, Páscoa, Santos Populares, Entrudo, Socorro, Remédios, Viso, Srª da Serra…), a alegria popular tinha o seu normal apogeu na grande Festa da colheita do Vinho: as Vindimas.

Na região do Alto Douro, essa era a época mais animada, dando lugar a reminiscências provenientes de milénios de cultura dionisíaca e báquica e ainda presentes no inconsciente colectivo.

Então eram necessários muitos braços, e formavam-se rogas nos planaltos e serras de Trás-os-Montes e da Beira, que desciam ao vale do Douro.

Estes grupos de gente nova (sobretudo homens, para acartar os cestos vindimos) vinham não só pela paga mas também pela brincadeira e pelas uvas que comiam.

Muitos eram de regiões onde não havia uvas, nem mesmo fruta de qualquer espécie, como os das aldeias altas de Montemuro e do Marão.

As rogas iam-se formando conforme combinações feitas com antecipação e já levavam, em geral, o seu destino.

Pelo caminho também era frequente cantarem e às vezes transportavam o seu bombo, uns ferrinhos, um violino, uma concertina…

As vindimas atraíam as mulheres para a corta das uvas e rapazes para as cestas. Os homens acartavam os pesados cestos vindimos de sol a sol e davam ainda 4 horas de pousa à noite nos lagares (das 20:00h à meia-noite).

Numa vindima de duas semanas (havia-as bem mais demoradas) um casal comum filho (cortar, acartar cestas, acartar cestos e pousas) levava para casa um óptimo pecúlio, destinado a investir no arranjo da casita ou num sonho de mulher: umas roupas e ouro.

A dormida era num estrado revestido de roço (feno): as cardanhas.

A dos homens separada das mulheres, mesmo havendo casais. Com uma tábua suspensa do tecto por arames para guardar o pão (broa), trazido à conta do trabalhador.

As instalações sanitárias não existiam: demarcavam-se na noite uma ou duas fiadas de bardos para as mulheres e outras para os homens. Uma folha de videira, de couve, ou uma pedra serviam de papel higiénico, que ainda não tinha sido inventado para os pobres.

Curiosamente, hoje tenta-se no Alto Douro reconstruir a vivências desses tempos.

Mas nenhum ‘turista’ de nova cultura conseguirá acesso à magia de cair à cama como uma pedra, depois de vindimar, ou acartar, ou pisar as uvas… e, sobretudo, depois de gastar o resto das forças a ‘rasgar’ um Malhão ou uma Chula, mesmo ao som de uma gaita de beiços!

Por isso, o GRANDE CANCIONEIRO DO ALTO DOURO não se preocupa como estabelecimento da origem das músicas: elas apareciam de todos os lados como andorinhas de Outono, para a Grande Festa do Vinho. Que, já desde a mais funda antiguidade bíblica de Noé, alegra o coração do homem:  “Vinum laetificat cor hominum”.

Muitos ‘serranos’ destas áreas eram elementos de famosas as bandas de música, como as da Gralheira, de S. Cipriano (Nova e Velha) e de Maqueija, nas imediações da Serra de Montemuro (que até iam a cavalo tocar às festas para que eram convidados); e levavam os instrumentos: clarinete, oboé, trompete… até um trombone de varas!

Nestas minhas recordações, também os de Barqueiros eram notados, pelas rabecas de braço curto, que animavam as longas pousas das grandes quintas da zona da Régua.

E ainda hoje recordo aquele violino na noite (trazido na roga do sr. Valentim, de Resende)…

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